Regresso das férias que incluíram uma semana na Polónia: Cracóvia, um pouquinho de Varsóvia e Auschwitz. Auschwitz-Birkenau.
Às 8 da manhã de 17 de Agosto já estou na Estação de Camionagem de Cracóvia, aguardando a saída do autocarro, num percurso de 1h e 20m para cerca de 60 km. A viatura já conheceu melhores dias, a estrada faz lembrar as de S. Miguel há 40 anos, estreita, com mau piso, os passageiros, que enchem o autocarro, são quase todos jovens (ainda bem) e fala-se italiano, francês, espanhol e inglês; há uma freira, polaca, uma miúda, trajada a rigor, que se embrenha na leitura do breviário… muita freira e muito padre há neste país, sempre trajando a rigor!
A lentidão da viagem ajuda-me a uma preparação psicológica de que sinto necessidade, apesar do que aprendi em muitos livros, documentários e filmes sobre aquilo a que Jorge Semprun, prisioneiro em Mauthausen, chamou o "mal definitivo"... Eu sei ao que vou, mas tenho dificuldade em interiorizar que, depois de pensar por tanto tempo em vir aqui, esteja agora tão próximo do lugar da Besta.
A ronceirice da viagem é quebrada pelos sinais de chegada a uma localidade - Oswiecim, Auschwitz em polaco - e vejo um cartaz, à beira da estrada onde se lê "Auschwitz, terra de paz".
Pouco depois, chegámos a um parque de estacionamento, há muitos autocarros, automóveis, caravanas, muita gente e um edifício com a cor típica do campo, a do tijolo; entro, há alguma confusão, uma livraria, uma pequena exposição, uma sala de projecção de filmes, balcões para visitas guiadas - eu dispenso os grupos, quero estar sozinho. Saio do casarão, há uma zona de terra, árvores e dou comigo em frente ao célebre portão com a inscrição "Arbeit macht frei"… Preciso de parar, a transição foi demasiado rápida, deixar que os meus olhos absorvam tudo. Passo o portão, e vou seguindo ao acaso por entre os numerosos barracões - aqui, tocava a orquestra, formada por prisioneiros, mais além está o terreiro onde se faziam as terríveis contagens de detidos, durante horas e horas - uma delas prolongou-se por 19 horas, todos em formatura, às vezes nus, os mortos da noite colocados no chão… Mais à frente, o muro das execuções, onde se assassinavam, a tiro, os desgraçados que a Gestapo e as SS entendiam matar… Ainda aqui estão também os cadafalsos onde os nazis enforcavam outros prisioneiros, aqueles a quem queriam provocar maior sofrimento… Entro nalguns barracões, circulando pelo emaranhado de corredores balizados pelos postes de sustentação do arame farpado, que era electrificado… o edifício da Gestapo, com as celas na cave, as salas, noutros edifícios, onde estão expostos os cabelos cortados às mulheres, os sapatos, as roupas, de adultos e de crianças, os óculos, os objectos pessoais, as malas - há fotos, muitas fotos, de prisioneiros, e muitos expositores com documentação dos alemães, sempre meticulosos na burocracia… E ali está o barracão das experiências pseudo-científicas dos médicos de Auschwitz… e quase à saída, a primeira câmara de gás e crematório que os nazis instalaram aqui, e onde ensaiaram a forma mais expedita de matar um milhão e meio de pessoas…
No total, estão neste sector, 28 barracões, que chegaram a alojar, em 1942, 20 mil pessoas, trabalhadores forçados nas fábricas que funcionavam em Auschwitz e que vinham aproveitar-se da mão-de-obra escrava.
É altura de passar ao campo da morte, Birkenau, a cerca de 3 km, feitos num autocarro gratuito; circula-se por uma estrada prazenteira, em plena planície, e, minutos depois, cá estamos, junto à linha de caminho-de-ferro que entra no campo passando por debaixo de uma torre onde estava o controlo geral de Birkenau. Não fazia ideia de que isto fosse tão grande, o terreno é plano, estende-se até lá ao fundo, ao bosque… e o tempo está, como por vezes acontece nos Açores, marcado por uma "calma tranquila" - expressão que procurei durante anos para caracterizar alguns dias de S. Miguel, aquela leveza dos ares, o sossego… -
Sigo a linha do comboio, até à "rampa dos Judeus", onde se fazia a selecção dos recém-chegados de todos os países ocupados pelos alemães, o chão é de gravilha, ladeado por relva dos dois lados, tenho, por companhia, o som dos meus passos, o canto dos pássaros e a cor dos trevos, amarela, animando o verde circundante. Aqui estava o poder absoluto, a decisão final: desembarcados dos vagões de gado, os médicos SS escolhiam… para a esquerda, a morte imediata, para a direita, a morte adiada…
Mengele, o "Anjo da Morte", reinava aqui, sempre impecavelmente fardado, botas luzindo, jovem, alto e loiro, cheirando a água de colónia, formado em Filosofia e Medicina. Dizem sobreviventes que gostava de assobiar trechos de obras de Wagner, e que tinha movimentos vivos e delicados nas mãos com que indicava as suas decisões… Mengele que era obcecado por gémeos e por indivíduos com deformações físicas, que apreciava "estudar" depois de mortos… Mengele que sobreviveu à guerra e acabou por morrer no Brasil, já velho, com um ataque de coração enquanto nadava…
Saio da rampa e dou comigo na estrada, à esquerda da linha, que era a que percorriam os que tinham sido escolhidos para a morte imediata - idosos, e mulheres com filhos abaixo dos 14 anos… Lá ao fundo estão as câmaras de gás e os crematórios, destruídos pelos nazis quando perceberam que os russos estavam perto (um deles foi demolido na sequência da única revolta registada em Birkenau, desencadeada por um grupo de prisioneiros que trabalhava nas câmaras de gás); os degraus que se desciam para a morte têm latinhas com velas e flores que os visitantes deixam aqui, há grupos de jovens israelitas que circulam pelo campo, acompanhados por adultos e percebo que alguns dos miúdos estão como que bloqueados mentalmente, sentam-se com um ar vazio, há outros que choram, em silêncio. Vejo que a linha de comboio vem até junto das câmaras, sei depois que a prolongaram até aqui quando, entre Maio e Julho de 44, cerca de 440 mil judeus húngaros vieram para Birkenau, levando as SS a acelerar o processo de extermínio… Há um casal jovem com um bebé, mesmo no fim da linha, acendem uma vela, a jovem senta-se nos carris e chora convulsivamente, afasto-me e sigo para o bosque que rodeia as câmaras de gás - passo pelo terreiro onde se queimaram corpos (porque os crematórios, nesses meses de 44 não conseguiam cremar todos os mortos) e vou parar a um dos lagos onde os nazis depositavam as cinzas dos assassinados… Caem alguns pingos de chuva, há uma garça real pousada à borda d'água, imóvel, parece estar de guarda, algumas plantas, com um aspecto muito viçoso, saem da água, firmes, à vertical… a chuva apagou as velas que estão por aqui, mas, entretanto, deixou de cair, e aproveito para acender uma delas… continuo e passo pelo pequeno bosque onde judeus aguardavam a entrada nas câmaras de gás, a minha memória visual recupera as imagens das fotos (que vi em tempos) das mulheres e crianças aqui sentadas, com um ar despreocupado, não sabem ao que vão, falaram-lhes em duche... sinto necessidade de tocar nas árvores… volto atrás e vou até ao Monumento internacional de homenagem às vítimas de Auschwitz-Birkenau… e está a decorrer uma cerimónia promovida por gente que já não é nova; há uma bandeira de uma organização de veteranos de Israel, do grupo destacam-se três pessoas, uma senhora e dois homens. Dos homens, um segura uma fotografia ampliada, que se percebe ser ele, ainda adolescente, prisioneiro, com um número, o seu número de preso - 157.615; acendem velas, depositam uma coroa de flores e há um senhor que vem para a frente do conjunto e que, voltado para o monumento, faz o que me parece ser uma oração, percebo que diz "Adonai, Adonai"… mas é uma reza imprecativa, interrogativa, quase que grita, chora… a cerimónia termina e vejo que senhora do trio de ex-prisioneiros está acompanhada por um jovem, a quem digo que gostava de a cumprimentar… o rapaz diz-me que esteja à vontade, a senhora é judia francesa, esteve presa 1 ano e 4 meses, e fez parte da "marcha da morte" para outro campo, Bergen-Belsen, quando os nazis, sabendo da chegada dos russos, deslocaram para outros campos, no interior da Alemanha, os sobreviventes de Auschwitz. A senhora é uma "madame" na melhor acepção da palavra, diz-se encantada por encontrar um português, desejo-lhe muita saúde e faço uma coisa que nunca tinha feito na vida - beijo-lhe a mão… E só depois lamento já não ter mais fotos no rolo (ainda não uso digital…) Vou saindo de Birkenau lentamente, ainda passo pelos barracões das mulheres, pelas latrinas, e por um barracão onde estiveram 148 crianças húngaras, antes de serem mortas - está lá um cartãozinho, que diz, em inglês, "Em memória de Hulinéck, morto, aos 3 anos, em Birkenau", com uma tira com as cores nacionais da Hungria, vermelho, branco e verde…
Subo à torre de entrada e lanço um olhar, lá de cima, ao longo do campo, enorme, e penso, mataram tanta gente, tão impiedosamente, tão fria e cruelmente… e as últimas vitimas foram assassinadas poucos meses antes de eu nascer… os judeus húngaros, depois os do gueto de Lodz e ainda os da Grécia, de Corfu…
Volto a Cracóvia, de novo com o autocarro cheio, de novo gente nova… Agora reina o silêncio, e eu também venho a pensar no que vou dizer à Joana, minha filha de 9 anos, quando ela me perguntar porque é que fui a Auzchwitz-Birkenau…
PS - Em Auschwitz-Birkenau, não foram assassinados só judeus; também mataram ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, prisioneiros de guerra russos, resistentes polacos, embora em menor número.
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