sexta-feira, outubro 04, 2013

INTERVENÇÃO DE JOSÉ MÁRIO BRANCO - I CONF. JOVENS DO BE

Lisboa – Faculdade de Letras – 11 de Novembro de 2000

Companheiras e companheiros

Quando me foi pedido para vir aqui hoje falar-vos, naturalmente aceitei. Não é a primeira vez, como sabem, que sou levado a exprimir-me publicamente como homem de esquerda e como artista desta terra.

O convite foi feito há algumas semanas, e de então para cá a perspectiva desta intervenção foi-me levando, contrariamente ao que é costume, para um progressivo estado de aflição misturado com cansaço. Está bem. Eu vou lá falar, mas para dizer o quê? Os dias foram passando, até hoje, sem conseguir encontrar uma resposta cabal a essa pergunta: dizer o quê?

Quem me conhece sabe que eu não consigo exprimir-me sem a despesa interior de ser verdadeiro, orgânico, e isso é igualmente verdade na música ou na política. Quando intervenho em público, só sei mostrar o estado em que me encontro, falar do que sinto, contar o que me acontece, na certeza quase inconsciente de que não quero, não posso, não sei ocupar este lugar no palco sem vos olhar nos olhos, sem vos abrir o coração, num misto de respeito e amor que é o tributo do homem ao privilégio de ser criador artístico.

Dizer o quê? Passou-me pela cabeça inventar uma razão para não vir, muito trabalho, uma gripe, demasiado cansaço. Mas eu estive no Bloco de Esquerda desde a primeira hora, e então iria agora arranjar desculpas para desaparecer da circulação?

Veio também a tentação da facilidade. Trazer a viola, dizer-vos – o que até é verdade – que o que possa ter a dizer-vos será muito melhor dito com canções, e cantar. Não faltam temas no meu reportório que se possam enquadrar nos diversos campos da luta. Mas isto seria a facilidade porque, aí, eu usaria a música como meio de fuga, como uma espécie de mentira piedosa para me enganar e vos enganar, e eu não sei ser músico e cantor dessa maneira: chegaria aqui com ar de vendido, debitava umas cantigas, vocês se calhar até gostavam e eu ia para casa muito mal disposto comigo próprio.

Então, “dizer”, mas dizer o quê? Porquê isto? Não terei realmente nada para dizer às pessoas, e especialmente aos mais jovens? Que se passa comigo? Que se passa na minha relação com os outros? Que se passa no mundo à minha volta para o meu discurso e o meu élan se encontrarem assim acorrentados, presos num nevoeiro denso e pegajoso, que só me oferece a tentação de me fechar, a vontade de deixar de aparecer, de me ir embora para África ajudar num campo de refugiados qualquer?

Esta longa introdução na primeira pessoa era necessária porque eu tenho de arranjar maneira de vos explicar que estou num estado muito esquisito. Quimicamente falando, o meu estado é uma emulsão de 33% de cansaço (género “estou farto de aturar esta sociedade de merda”), com 33% de revolta (com o espectáculo do mundo bárbaro que o capitalismo global nos impõe), e com 33% de optimismo. Sim, é verdade, 33% de optimismo.

E quando cheguei a esta parte da receita, fiquei tão surpreendido comigo como alguns de vocês terão ficado agora. Então tanta lamúria, tanta vontade de não falar e… 33% de optimismo? Era preciso perceber o porquê.

Qual foi o alimento, no dia-a-dia de todos os dias, para conservar, despertar, ou não deixar morrer esse optimismo?

Por causa de um livro que alguém anda a escrever sobre mim, tenho andado nestes tempos a fazer uma coisa de que não gosto nada, que é falar sobre o meu passado, como foi a infância, a juventude, o exílio, as lutas, o despertar para a música, o teatro, as cooperativas – enfim, eu que nunca guardei fotografias, troféus de prémios ou recortes de jornal tenho sido obrigado a levantar a poeira do sótão da memória, e, como para toda a gente, o meu sótão também tem os seus fantasmas, o seu caruncho, os seus cadáveres nos armários. Mas o certo é que, por força das entrevistas, revivi, re-senti o que se passava comigo há quarenta ou há trinta anos, quando não tínhamos qualquer hipótese de sermos felizes.

Mas porque tinha de ser assim, se as coisas eram tão claras e definidas? Ou aceitas ou te insurges, ou vais ou não vais. A resposta à pergunta “onde está o inimigo?” era tão evidente, a ideologia era uma coisa tão certa e segura que as discussões, as rupturas, os programas eram questões quase técnicas, misto de engenharia civil e de geometria descritiva. Andávamos cheios de certezas, mas andávamos tristes. As certezas ideológicas atiravam para fora de nós, para os outros, aquelas perguntas inevitáveis que só os poetas sabem fazer bem. Mas que raio andamos aqui a fazer? Projecto não nos faltava: deitar abaixo a grande parede, abrir as comportas, pôr as turbinas a funcionar.

Era tudo tão obrigatoriamente evidente, que as ideias eram quase como picaretas, cada ideia uma ferramenta com uso próprio e utilidade inquestionável.

Deitámos abaixo a grande parede. E outras grandes paredes. E o mundo mudou tanto!

O capitalismo mundial percebeu, há muitos anos, e muito antes de nós, que a sua única saída era usar os novos meios tecnológicos para reconstruir essas paredes, só que, agora, dentro das nossas cabeças.

Companheiros, eu não vos vou dar lições sobre o estado em que está o mundo. Cada um olha à sua volta, e vê o que for capaz, ou o que quiser ver.

Mas quando se me agita esta revolta, este asco, este cansaço de alma que me provoca o universo capitalista, e faço a pergunta que tão cedo tive de aprender a fazer (“onde está o inimigo?”), eu concluo que as armas mais terríveis que a escória capitalista foi apurando para escravizar a humanidade são três: a imponderabilidade, a impotência e a mediocridade.

A imponderabilidade (que não é o mesmo que imaterialidade) corresponde à abstractização de todo o processo de dominação. O poder não aparece exercido por pessoas, com nome e com cara, mas por conceitos, conceitos consensuais, inapeláveis, fundadores da normalidade e da legitimidade. A democracia, a sociedade de mercado, o fim das ideologias, a política como discurso (e não como acção). E muitos outros conceitos, todos igualmente apresentados com o carimbo da evidência e da naturalidade das coisas. A cada um desses conceitos corresponde a sua respectiva e grande mentira. Onde se diz democracia pratica-se a opressão, o roubo e o incitamento permanente à não-intervenção social. Onde se diz sociedade de mercado pratica-se o mercado da sociedade, as pessoas como simples mercadoria descartável. Onde se diz o fim das ideologias pratica-se a ideologia única, dominadora e dissimulada, a unicidade cultural, a unicidade informativa, a unicidade educacional, a unicidade gastronómica, a unicidade vestimentar, etc. A política é um discurso, não uma acção, um discurso não sancionável pelos eleitores porque o que se apresenta como discurso alternativo é outro discurso, idêntico no essencial ao primeiro, e igualmente separado da acção. E a própria margem consentida aos contra-discursos, de que é exemplo o Bloco de Esquerda, é uma margem diariamente calculada e analizada ao milímetro sempre que haja risco real de esse contra-discurso se concretizar em acção.

Neste aspecto, os meus 33% de optimismo resultam de verificar que nos últimos anos se tem vindo a gerar um movimento de fundo, com tendência para se espalhar pelo planeta, que, sem gastar mais tempo do que é preciso a produzir o contra-discurso, vai compreendendo que ele só pode ser produzido pela acção, pela intervenção aberta, visível e evidente, na hora certa e no local certo. E é evidente que a globalização capitalista, aos poucos, irá tendo a resposta global que lhe poderá fazer frente. O primado da acção sobre a ditadura dos conceitos terá de ter como efeito e resultado, não só o renascimento dos conceitos e da ideologia revolucionária, mas também o acordar de milhões de oprimidos para a luta, agora que cada vez mais a pergunta “onde está o inimigo?” encontra uma resposta concreta e adequada em cada pessoa.

A segunda arma do capitalismo global selvagem, a que me referi, é a impotência. Para os senhores do mundo, cujas caras nunca vemos, ou que nunca identificamos como tais, é fundamental que as pessoas, à medida que são espoliadas, desvitalizadas e atiradas para o cemitério, tenham sempre o sentimento de que, por si próprias, nada podem mudar, que não há maneira, não há alternativa. O domínio capitalista também tomou conta da semântica. A palavra “caos”, por exemplo, ou a palavra “segurança, são usadas para transmitir a ideia exactamente inversa do seu conteúdo. O caos será, assim, o horror da desordem e da destruição, quando na realidade só do caos pode nascer a vida e a criação, do mesmo modo que só da água a ferver nasce o vapor e a cozedura dos alimentos. A segurança é-nos imposta como o conceito paralizador da mudança, quando sabemos que é preciso mudar a sociedade precisamente porque ela é insegura para toda a gente, quer no emprego, quer na rua, quer na gestão dos conflitos, quer na sustentabilidade da produção de bens e do meio ambiente.

A principal maneira de nos desarmar, de nos remeter à impotência, que tem o sistema capitalista global, é desarmar (e virar contra nós) as nossas palavras, a nossa semântica, os significados e os significantes da nossa ferramenta de comunicação. Só a resistência diamantina dos grandes poetas, ou a genial inconformidade de um João César Monteiro, conseguem resistir, abrir brechas, preservar tesouros que todos os dias nos são roubados.

Finalmente, a mediocridade. O nivelamento por baixo, a bestialização, o atafulhamento do tempo vital com toneladas de tralha para onde se possa transpôr o grosso das nossas energias. No princípio dos anos setenta, em Paris, o sociólogo Jacinto Rodrigues fez um inquérito junto dos emigrantes portugueses, e contou-me o seguinte. Um emigrante português, de meia-idade, que trabalhava doze horas por dia na Citroen, tinha por morada uma pequena barraca no extremo do bidonville de Saint-Denis, onde vivia sozinho porque a família tinha ficado toda em Portugal. Acontece que essa barraca, para seu azar, ficava junto do local onde todos os bairros circundantes daquela cidade vinham despejar o lixo diário. Assim, todos os dias, sempre que regressava extenuado do trabalho, já noite fechada, aquele homem, antes de poder entrar em casa, tinha de largar o saco, pegar numa pá que se habituara a deixar no local conveniente e, à pàzada, afastar centenas de quilos ou toneladas de lixo para poder, simplesmente, entrar em casa, comer e descansar umas horas.

O sistema faz isso connosco, camaradas, e nós temos, com a ajuda e no contexto da esquerda, de arranjar as nossas pás para afastar tanto lixo do caminho do nosso descanso, da nossa libertação. A mediocridade, o telelixo, a desinformação, a censura óbvia que nos oprimem são em tal quantidade que milhões de pessoas não conseguem entrar em casa, ocupar o seu espaço, ser alguém. Temos que ver isso como um aspecto decisivo da nossa luta pela libertação. Temos que criar e reforçar redes alternativas de circulação de ideias e de informações. Temos de resistir, sendo que ainda não estamos em condições de contra-atacar. Não ter medo de chamar mediocridade à mediocridade, não ter medo de usar o poder que ainda nos resta do botão de desligar, não ter medo de cortar conversas parvas e inócuas à nossa volta, não ter medo de resistir à mediocridade.

Todos temos as nossas mediocridades, é evidente, mas somos nós que as temos, não vem ninguém metê-las no nosso prato de sopa. Desculpe, com essas lido eu, caro senhor, não tenho nada é que aturar as suas. Estou farto. Quero oxigénio. Deixem-me respirar, estou-me nas tintas para as audiências. Ou, como anteontem dizia o João César Monteiro: “Olhe, minha senhora, que se foda !”.
Agora reparo que falei de 33% de cansaço e 33% de revolta. Sobra portanto 1%, o que deixa, na realidade, 34% de optimismo.

Até sempre.