sexta-feira, maio 25, 2012

Demónios Interiores




Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores

tratei-os com carinho
pus jarra de flores
abri o melhor vinho
trouxe amêndoas e licores

chamei-os pelo nome
quebrei a etiqueta
matei-lhes a sede e a fome
dei-lhes cabo da dieta

conheci bem cada um
pus de lado toda a farsa
abri a minha alma
como se fosse um comparsa

E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Adeus, foi um prazer!
disseram a cantar
mantém a mesa posta
porque havemos de voltar

segunda-feira, maio 14, 2012

Menina dos meus olhos




Fosse a menina dos meus olhos puta
e fornicara com as televisões
as duas novas da greta e da gruta
e as duas velhas pelas mesmas razões

rectangular e omnipresente nesga
que tem pra tudo as melhores soluções
fosse a menina dos meus olhos vesga
logo lhe dera as suas atenções

ai fosses tu menina dos meus olhos
com teus lacinhos e caracóis
a inocência vai nos entrefolhos
e fica a pátria amada em maus lençóis

entram pelas casas sem ser convidados
tempos de antena e outros futebóis
ficaram todos mais bem informados
opinião pública dos o...rinóis

são cus e mamas a dançar de gatas
mailas gravatas dos seus figurões
as euforias ficam mais barata
se domesticam-se as excitações

pobre menina ficas à janela
depenicando as tuas distracções
lavas a loiça fazes a barrela
mas essa merda não cede às pressões

os antropófagos das nossas dores
tomaram conta da aldeia global
fazem milhões a converter horrores
em audiências de telejornal

o insuportável torna-se rotina
e a realidade já é virtual
a dor da gente é inesgotável mina
que lhes rentabiliza o capital

as reportagens e as telenovelas
juntam os trapos pezinhos de lã
com a verdade ali a olhar pra elas
histórias da civilização cristã

já não é sangue o líquido vermelho
que nos reserva o dia de amanhã
e tu menina vais-te vendo ao espelho
e sofres dos dois lados do ecrã

noventa e quatro chegou à cidade
noventa e oito está quase a chegar
fez vinte aninhos a nossa liberdade
já é bem tempo de a desvirginar

e se o dinheiro não dá felicidade
televisões bem a puderam dar
talvez que para manter a sanidade
eu chegue ao ponto de ter que cegar

e a menina dos meus olhos há-de
conseguir ver para além do meu olhar

«José Mário Branco, ao Vivo em 1997», CD2, faixa 3, 1997

segunda-feira, maio 07, 2012

Luz



Ano: 2000

Eu andei no escuro
E alguém aqui passou
P'ra me iluminar

Sou quem viu no futuro
Este amor que começou
Por quem me quis dar
A minha luz...

Ninguém viu no teu olhar
A luz que ilumina o meu andar
Ninguém viu este amor a começar
Mas alguém
Tem na voz o teu cantar

Foste quem partiu tão cedo
E eu sou quem tem um segredo
Quem te vai guardar

Foste quem me viu tão perto
E eu sou quem foi descoberto
Quem há-de cantar
A tua luz...

Ninguém viu no teu olhar
A luz que ilumina o meu andar
Ninguém viu este amor a começar
Eu sou quem
Tem na voz o teu cantar

Houve dias em que não quisemos ser felizes

Houve dias em que não quisemos ser felizes.
Impusemo-nos uma tristeza com estilo, uma melancolia importada de terras longínquas e cinzentas. Ouvíamos ecos de cidades industriais, cantados pelos novos mártires. “Here are the young men”, diziam. E estranhamente, éramos nós esses jovens, aparentemente com o peso do mundo às costas, vestidos de gabardinas que nos identificavam como pessoas esclarecidas. Eu sei. Eu estive lá.
Foi neste quadro que nasceu a Sétima Legião. Primeiro, um improvável power trio que conquistou um segundo lugar num anónimo concurso de música moderna.
Depois, pouco depois, um colectivo que rasgou as molduras em que os quiseram enclausurar e arrastaram consigo toda a novíssima música portuguesa.
Esta colecção de canções traz alguns dos sinais. Dos primeiros tempos ingénuos e generosos (mas nem por isso menos geniais) de “Glória” (1982) ou “O Canto e o Gelo” e “Manto Branco” (1984) a “Monção” (1988) foi longo o caminho percorrido por este grupo de amigos. E ainda há tempo para recordar os hinos (“Sete Mares”, “Por quem não esqueci”) e saborear os dois inéditos – curiosamente com um travo saudavelmente nostálgico.
No fim, o segredo da Sétima Legião ainda continua por desvendar. A única coisa que sabemos é que o tempo não irá roubar estas canções.

Nuno Miguel Guedes
2000
in A história da Sétima Legião – canções 1983-2000