terça-feira, março 30, 2010

Correio Azul

Sérgio Godinho
in Domingo no Mundo

Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar estas cinco nuvens negras
relembra-me as regras
do saber viver
repõe-me o sentido nos sentidos
olfactos
ouvidos
à vista
de tactos
do teu paladar

Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar esses blues de pacotilha
renega e perfilha
respectivamente
a torpe indiferença
e o amor ardente
amor tão ardente
que dos erros meus
má fortuna se ausente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente

Manda-me uma carta em correio azul
que me deixe a face roburizada
promete-me a noite fatigada
de termos aberto o nosso nexo
ao sexo
da vida
porção destemida
da nossa emoção

Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente

Manda-me uma carta em correio azul
que branqueie o passado num momento
paixão, é no corpo o sentimento
que faz da razão montanha russa
aguça
o encanto
mas no entretanto
faz estragos mil

Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente

Manda-me uma carta em correio azul
para eu guardar no castanho dos armários
no meio de testemunhos vários
escritos por letras tão distantes
murmúrios amantes
que a vida me oferece
só por muito amar

Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente

quinta-feira, março 11, 2010

Bullying


Aproveitei a questão para fazer formação cívica aos meus alunos do 7º ano.
Acho que mais importante do que discutir o estrangeirismo da palavra, ou a violência em si, faz mais sentido discutir o tipo de brincadeiras que eles têm.
Primeiro incutir-lhes que toda a brincadeira "parva", tem as suas consequências, e que eles são responsáveis por elas e segundo que nenhum de nós reage da mesma maneira às mesmas coisas. Se um de nós pode reagir com um encolher de ombros quando colocado dentro de um armário, outro pode reagir de forma violenta e outro ainda pode ganhar um medo tal de quem o colocou no armário, que ao vê-lo desata a correr a fugir, podendo atravessar uma rua sem olhar e ser atropelado (ou atirar-se para dentro de um rio, sabendo que não sabe nadar).
E dei-lhes outros exemplos de brincadeiras que presenciei e que podem ter consequências:
- andar a atirar garrafas de água pelo ar, encharcando o chão de um pavilhão.
alguém escorrega e parte uma perna... eles são responsáveis
- andar com um colega às costas debaixo de um vão de escadas.
batem com a cabeça do colega nalgum lado... são responsáveis
Acima de tudo, este tipo de educação, responsabilizar, mostrar que as nossas acções têm consequências, mesmo que não as desejássemos, partem de casa.
Quando o meu sobrinho faz uma asneira e lhe ralho, responde logo: "foi sem querer"... Pois foi, mas explico-lhe sempre que podia ter sido evitado. Se ele se levanta da mesa a correr e com os braços leva tudo à frente e entorna um copo que está em cima da mesa, é óbvio que foi sem querer, não o fez de propósito, mas poderia ter sido evitado, se se levantasse da mesa com calma. E é sempre estas lições que ele leva de mim.
De resto, isto é também um pouco o que se passa na praxe.
Uns interpretam o que se passa como uma brincadeira, participam com gosto e defendem com unhas e dentes, outros sujeitam-se porque têm medo. E, infelizmente, raras não são as vezes, em que as brincadeiras têm consequências...

segunda-feira, março 08, 2010

Corte uma perna

Texto de: Rui Tavares
Eurodeputado do Bloco de Esquerda


Pois é: os salários são um custo. Mas também são uma fonte de procura.

“Quer perder vinte quilos de uma vez?” — diz a velha anedota, e responde: “corte uma perna!”

Nesta altura do campeonato já não espanta que a opinião dominante no nosso país seja uma versão desta anedota em teoria económica. Vários economistas, tão vociferantes quanto insistentes, pretendem que Portugal precisa de medidas radicais para resolver os seus problemas do défice e da dívida. A solução proposta, com ar de quem não faz mais do que anunciar o inevitável, é cortar nos salários dos portugueses. Que tal dez por cento para começar?

À primeira vista, faz sentido. Se eu cortar uma perna, perco vinte quilos, e de um momento para o outro. Excelente! Mas se eu cortar uma perna, passarei a ter uma vida mais sedentária. Terei mais dificuldades para fazer exercício; é possível que perca a força de vontade e me deprima; é possível que me vingue comendo hambúrgueres. Em resumo, posso acabar com mais peso do que no início.

Se nós cortamos os salários, também parece que resolvemos o problema da dívida pública de uma vez só. Os salários da função pública ficam mais fáceis de pagar com uma proporção menor do orçamento do Estado — logo, menos défice — logo, menos dívida pública ao longo do tempo. E a dívida externa? Bem: os cortes de salários em geral, e baixa do consumo que eles arrastam, fará com que compremos menos ao estrangeiro e equilibrará — talvez com um pouco de magia negra — a nossa balança com o estrangeiro. Menos importações e, com os salários baixos, exportações mais competitivas. O pior é se os estrangeiros seguem a mesma receita. Não se preocupem: exportamos para outro planeta.

***

Mas, tal como se cortarmos uma perna, as coisas não são assim tão simples. Se o salário do cidadão comum for cortado em um terço, é possível que ele deixe de vez de ir almoçar fora. Os donos de tantas tascas e restaurante por esse país adentro tentarão aguentar tanto quanto possível, e acabarão despedindo os empregados de mesa e as cozinheiras. O desemprego aumenta e essas pessoas também deixam de consumir. Pois é: os salários são um custo. Mas também são uma fonte de procura.

Passado algum tempo estamos, como a pessoa que cortou uma perna para perder peso, mais fracos e com menos capacidade de resistir. Se calhar, até com mais peso: é que à crise do défice e da dívida agravam-se a crise de emprego e a crise de procura. À recessão segue-se uma depressão, com deflação à mistura, o que significa que o valor da dívida aumenta em termos reais.

Quer isto dizer que o défice não é sério e a dívida não é para pagar? Não. Quer apenas dizer que eu confiaria mais em quem me dissesse: se é realismo que queres, vais demorar bastante tempo a pagar essa dívida. E vais precisar de toda a disciplina e toda a força de trabalho disponível. Vais precisar também de igualdade na repartição de fardos e benefícios: tudo a fazer exercício. Caso contrário, teremos apenas uma transferência de gordura de baixo para cima.

É que os mesmos empresários que hoje querem uma diminuição de salários irão mais tarde sofrer com a contração do consumo. E aí não terão o mínimo pejo em exigir ao estado “ajudas para a exportação”, “balões de ar para o setor” e a satisfação de outras necessidades semelhantes. O défice deixará então de ser uma preocupação; o dinheiro que não se gastou com o assalariado antes será gasto com o patrão depois — a empresa estará em risco de falência, ameaçada, e de cabeça perdida — e estaremos de novo endividados.

Endividados — e com uma perna a menos.