quarta-feira, abril 23, 2014

OUTRA VEZ

(John Ulhoa / Hélder Gonçalves)

Dizem pra te contentares
Se um amor a vida traz
Tanta gente sem nenhum
Que é errado querer mais

Não consigo ser assim
Tanto amor que há pra gastar
Se o romance acabar
Numa próxima estação

Eu sei que vou me apaixonar
Sei que vou me apaixonar
Outra vez

Dizem que se terminou
É porque não era amor
Não me venham reclamar
Que alguém sem par ficou

Não prejudiquei ninguém
Na matemática dos casais
Se o romance não valeu
No próximo verão

Sei que vou me apaixonar
Sei que vou me apaixonar
Outra vez

CURTO CIRCUITO

(Sérgio Godinho / Hélder Gonçalves)


É curto o circuito
entre o temporal e a calmaria
acertei polos
e pronto
já positivei o dia

Não dês
o dito por não dito
não sou o teu curto circuito

Negativados
sempre de apagão em apagão
no entanto perto
da lua nascer num só clarão

Não dês
vaidade ao positivo
nem condescendência ao negativo

Rasga a minha pele
não me rasgues a pele
cicatriza perto
da energia incandescente
do amor

Não vale a pena
tudo vale a pena
diz o livro das tarefas
da energia incandescente

Tocas-me fundo
e nisso é contínuo o desafio
por ironia
é chamado estático o arrepio

Não dês
potência a uma só luz
nem te esvaias
em tudo o que reluz

Rasga a minha pele
não me rasgues a pele
cicatriza perto
da energia incandescente
do amor

Não vale a pena
tudo vale a pena
diz o livro das tarefas
da energia incandescente
deste amor

Não vale a pena
tudo vale a pena
diz o livro das tarefas
da energia incandescente

A VER SE SIM

(Nuno Prata / Hélder Gonçalves)

Como se,
por fim, soubesse
aquilo que do amor se faz — mas
não sei bem.
Nunca sei,

visto que
vagueio em vão, só
no descrer
me demoro —
e se tu
fores meu chão?

Pois, tu
és o que me dás aos dias;
és o que cresceu em mim —
e ando eu tão perdida,
a ver
se sim…

Se o que sou
se confunde com o
que não dou,
quem vai ser capaz de
querer do amor
solução? Tu.

Tu,
naquilo que dás aos dias,
na soma do que és em mim
com o que me traz perdida —
a ver
se sim.

BASTA

(Arnaldo Antunes / Hélder Gonçalves)

o estômago no coração
uma estrela pra pegar com a mão
mais um livro fora do lugar
um copo d’ água para transbordar

uma bússola em vez de relógio
uma festa depois do velório
um quilómetro ao redor de mim
toda a primavera um dia chega ao fim

mas eu sei
que aproveitarei
e isso basta, basta
se é pouco
o resto eu dou de troco
e isso basta, basta

um botão pra desabotoar
uma boca para abocanhar
dez segundos para decidir
todo o mundo junto pra conseguir

um supermercado como labirinto
um olho fechado pra mostrar que minto
muita paciência para escutar
menos timidez para poder falar

mas de perto
o que pegar eu aperto
e isso basta, basta
e de dentro
o que não der eu invento
e isso basta, basta

eu sei que aproveitarei
e isso basta, basta
o resto eu dou de troco
e isso me basta, basta
basta
basta

OUTRO MUNDO

(Sérgio Godinho / Hélder Gonçalves)

Toco ao de leve
as dedadas
cavo fundo
as ossadas
Tabuleta
esqueleto
num outro
alfabeto

Vais ter que vir doutra vida
pra teres outras vidas de mim
Vais ter que ser de outro mundo
pra seres outro tanto de mim

Eu preciso de uma prova concreta
pra saber que vens de outro planeta

Impressões
digitadas
ossaturas
musculadas

Um só objecto
identifica
quem se vai
quem se fica

Vais ter que vir doutra vida
pra teres outras vidas de mim
Vais ter que ser de outro mundo
pra seres outro tanto de mim

Eu preciso de uma prova concreta
pra saber que vens de outro planeta

Desvenda-me o código
Desvenda-me o teu código / desvenda-me

ZEITGEIST

(Samuel Úria / Hélder Gonçalves)

Vestes verde, que és campestre.
Foste mestre de Feng Shui.
Sempre te modernizaste:
Tatuaste “Amor de pai”.

É indigência chique;
Um balde de água freak.

Tão fora
Que até chegas a ser homem.
Vestes rosa se é de imprensa,
Pensas que é só cor carmim.
Sabes cem passos de dança.
Estuporaste a MTV.

Sem dó, sem fé, sem pressa:
Lado negro da farsa.

Tão brando
Que até chegas a ser homem.

Mas ouve o som! Ouve o som!
Tocou o despertador.
(És um tipo do teu tempo)
O rei e senhor.

(És do tipo do teu tempo)

Ciber-agitador,
(Mestre-sala do teu tempo)

Vestes preto sem ser luto,
Hoodies são os novos fraques.

Animado anonimato:
Quem vê caras vê Guy Fawks .
Ouve o som! Ouve o som!
(És um tipo do teu tempo)
Mas põe-te a andar

(És do tipo do teu tempo)
Tu és o rei e senhor,
(Mestre-sala do teu tempo)

Mas já tocou. Ouve o som!
Põe-te a andar.

MUSEU DO MUNDO

(Arnaldo Antunes / Hélder Gonçalves)

as ondas vêm
as nuvens vão
sem direção
eticétera e tal
tudo igual

as horas vêm
os dias vão
na imensidão
sem voltar pra trás
tudo em paz

no museu do mundo
onde eu me perdi

nesse lugar
não há futuro
onde chegar
nem continuar
nem morrer

estamos sós
nós dois a sós
só tu e eu
nessa solidão
sem nos ver

no museu do mundo
onde eu me escondi

restos mortais
e animais
em extinção
rastos ancestrais
pelo chão

e nada mais
só espirais
de um furacão
na respiração
vêm e vão

no museu do mundo
onde estou, aqui

CANÇÃO DE ÁGUA DOCE

(Samuel Úria / Hélder Gonçalves)

Pôs-se a cantar
O amor ao rio
E este seguiu
Sem replicar.
Veio a resposta
Em breve assobio,
Que o vento trouxe
Um travo a mar.

E ela provou que ele
Também está só:
Foi de água doce,
Mas amargou.

Emudeceu
Por estar sem rio.
O olhar vazio,
Voltou-se ao céu.
Raio e trovão,
Setas de cupido,
Volveu paixão
Quando choveu.

Ela esticou-se e
Molhou a mão.
Era água doce;
Fez-se em canção.

Artesanato

(Sérgio Godinho / Hélder Gonçalves)

O nosso amor
está no lugar exacto
artesanato
de calor apurado

Bicicleta
em roda livre e secreta
livre é a meta
desta vida inexacta

Setembro é mesmo
o começo do ano
sim, o vento mudou
cai o pano

Artesanato
exercício de estilo
intencionalmente
tão perfeito e inexacto

Matérias do corpo
tão particularmente
num pega e despega
frequente

Toca que toca
Setembro é chegado
sim, o vento mudou
dá de lado

Ai Ui
Ei por onde é que andaste
a subir escarpas
e a descer ao regato
Oi Ei
Ai que falta me fez
o teu artesanato

Escultura
pés de barro perenes
por vocação
tão espessos, tão ténues

por intuição
molda-se a mão à pele
não sabe do amor
quem só quer saber dele

Folha caduca
Setembro é chegado
nunca varre o vento
o passado

Artesanato
acto eléctrico acústico
mesmo rústico
se sofisticado

Matérias do corpo
tão particularmente
num pega e despega
frequente

Ai Ui
Ei por onde é que andaste
a subir escarpas
e a descer ao regato
Oi Ei
Ai que falta me fez
o teu artesanato

TAMBÉM SIM

(Regina Guimarães / Hélder Gonçalves)

a menina
do teu olho
a ravina
do teu rim
a nudez
de uma mão
talvez não
também sim

és o sul
do meu desnorte
és a foz
desta nascente
és o mar
que sobe à boca
sê a porta
do oriente

a orelha
o pulmão
a garganta
o joelho
tu e eu
grão a grão
também sim
talvez não

és o sul
do meu desnorte
és a foz
desta nascente
és o mar
que sobe à boca
sê a porta
do oriente

ensina-me magia
na aula de anatomia
eu mesma sou lição
cobaia por vocação

o voo
de asa cortada
a dança
no pé de vento
o sopro
do coração
talvez sim
também não

és o sul
do meu desnorte
és a foz
desta nascente
és o mar
que sobe à boca
sê a porta
do oriente

A CONTA DE SUBTRAIR

(Regina Guimarães / Hélder Gonçalves)

cada bola cada bala mata um
lei da selva lei da escola
rei do pim pam pum
ó setora o meu pai ensinou-me assim

de pequenino se traça o destino
de pequenino se faz o assassino

cada fala cada faca mata um
lei do sangue lei do medo
rei do pim pam pum
ó setora o papá é igual a mim

de pequenino se traça o destino
de pequenino se faz o assassino

de pequenino se aceita o destino
de pequenino se faz o assassino

ó setora
quem mais chora menos mija
era o que dizia a minha avó
mãe do meu pai a cota
e a cota sabia-a toda
seja como for
sejas tu quem fores
o mundo é dos fortes
está ver a cena a cores
se a alma não é pequena
dez no focinho
noves fora
um herói
estamos todos fodidos
e mal pagos
a senhora também
não é setora?
mas a gente sabe da poda
da ganda foda
e a senhora não

que se lixe
bué da fixe
os alunos saberem mais
que a professora
é só uma conta de subtrair
e não vale trair
que a setora tem quatro pneus
e não há air bag que lhe valha

de pequenino se traça o destino
de pequenino se faz o assassino

de pequenino se aceita o destino
de pequenino se faz o assassino

Rompe o Cerco

Letra: Carlos Tê
Música: Hélder Gonçalves
in: Corrente

Limpo as mãos
Vou embora
É outro dia
A luta continua
Lavo a chaga
Purgo a dor
Salto a cerca
O luto continua
Pinto os olhos
Unto a pele
Venho à tona
A vida continua
Mordo a rua
Cuspo o fel
Rompo o cerco
A lama continua
O circo continua
A farsa continua

Eu sei que algo vai mudar
O jogo vira custe o que custar

Faz a mancha
Cava a falta
Esfrega a alma
A lama continua
Limpa a chaga
Salga a dor
Salta a cerca
A vida continua
Limpa as mãos
Vai embora
É outro dia
A luta continua
Lava a chaga
Purga a dor
Salta a cerca
A vida continua

Eu sei que algo vai mudar
O jogo vira custe o que custar


A paz não te cai bem

Se o amor faz sofrer
Se a paixão faz doer
O que o ódio fará?

Não soube o que dizer
Magoei sem querer
Mas não queres perdoar

Discutiste
Insististe
E pior não me ouviste
Nem me viste chorar

Eu cedi
Concordei
Admiti que errei
Mas só queres guerrear

E eu sei
Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Não Não

Argumentos que ferem
Silêncios torturam
Gestos são letais
E afinal, pra quê mais?
Concordar jamais
Mesmo que eu diga sim

E eu sei
Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Vi também que a paz em ti não fica bem
Não Não

Oh Não
E eu vou
Vou desandar daqui
Antes que o céu
Decida desabar sobre mim

E eu sei
Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Vi também que a paz em ti não fica bem

Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Sei também que a paz em ti não fica bem
Não Não


quinta-feira, abril 03, 2014

Um dia não são dias não



Como que morto para o mundo
Expiro num sono profundo
Enterrado no colchão

Quando a minha mulher me chama
E me faz saltar da cama
Pergunta "sabes que horas são?
É que eu já estou atrasada
E a bebé está acordada
A precisar de atenção".

Mudo a fralda à bebé ainda a dormir a pé
A tactear na escuridão
Tento combinar-lhe a roupa
Antes de lhe dar a sopa - é essa a indicação

Entrego a bebé à avó
Para conseguir ficar só
Enquanto elas vão dar a volta ao quarteirão

Aproveito assim que posso
Para aquecer o meu almoço
Um resto de arroz de feijão
Que vou comer para o sofá
A amaldiçoar a manhã e o amanhã
Deitado em frente à televisão

Diz-se um dia não são dias,
Mas às vezes é esta a frustração:
A de saber que quando são,
um dia não são dias não.

Passo o dia em pijama
Pronto para voltar para a cama,
A curtir a depressão

Tenho um emprego precário,
Um part-time temporário,
Um biscate que arranjei no fim do verão

Mas hoje é o meu dia de folga:
É o dia que mais me empolga,
É uma verdadeira vocação.
Também já fui avisado
QUe no fim do mês vou ser dispensado - a crise é a justificação.

Então, em vez de proletário a fingir
Volto a ser o que sempre fui:
Um burguês falido.
Volto a ser o meu próprio patrão,
A magicar o dia inteiro
Mil maneiras de conseguir ter dinheiro
Sem cravar a mulher, a mãe e o irmão.

Diz-se um dia não são dias,
Mas às vezes é esta a frustração:
A de saber que quando são,
um dia não são dias não.