A poesia ainda é uma arma política?
Nos 35 anos da morte de Pablo Neruda, poetas reconhecem o declínio actual da literatura de intervenção
SÉRGIO ALMEIDA in JN
O que resta hoje da poesia de contornos políticos, de que Pablo Neruda foi um dos maiores cultores? Três poetas ouvidos pelo JN (Manuel Alegre, Humberto Rocha e António Pedro Ribeiro) realçam a sua importância mas advertem para os riscos.
"Arma carregada de futuro", conforme definição do espanhol Gabriel Celaya, a poesia sempre reforçou a sua importância nas grandes crises morais da Humanidade, altura em que a voz dos poetas adquiria uma ressonância mais forte e clara. Os tempos, todavia, não correm de feição para estes "legisladores sem lei do universo", de que falava Novalis, confrontados com uma sociedade- espectáculo cujos valores parecem estar nos antípodas morais dos seus.
A guetização crescente da poesia (circunscrita a tiragens que raras vezes ultrapassam as poucas centenas de exemplares) e a transferência da discussão para outros espaços, mais imediatos mas também mais voláteis, são alguns dos motivos que tornam improvável, hoje, o aparecimento de um poeta que desempenhe o papel de guardião moral do seu tempo, como aconteceu com Pablo Neruda, afirmam os autores ouvidos pelo JN.
Mesmo discordando do conceito - "toda a poesia, em última instância, é ideológica, porque não há neutralidade na poesia", diz -, Manuel Alegre admite que nos escritos das novas gerações de poetas os sinais de intervenção pública estão muito mais diluídos do que acontecia ainda há três décadas.
No entanto, recusa-se a ver no facto uma certidão de óbito antecipada da poesia que se coloca ao serviço de valores. "São ciclos. As circunstâncias também são diferentes, mas a nossa poesia é rica em autores com um elevado sentido cívico e político nos seus textos, como Sá de Miranda, Almeida Garrett, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner", explica o autor de "Praça da canção", para quem "são precisamente os escritos de Neruda centrados na discussão ideológica aqueles que o tempo se encarregou de arrumar, em contraste com os poemas de amor, por exemplo".
Estará, então, a poesia que se empenha nas causas do presente, como aconteceu com a do poeta chileno, condenada a um rápido esquecimento? A questão está longe de gerar consenso. António Pedro Ribeiro, cuja obra inclui escritos tão mordazes como "Declaração de amor ao primeiro-ministro" ou "Queimemos o dinheiro", não tem dúvidas de que a poesia de cariz militante "faz hoje mais sentido do que nunca", citando como exemplo "as recentes crises da alta finança", que apenas vêm mostrar, afinal, que "o capitalismo desumano continua a ser o mesmo dos tempos de Pablo Neruda".
Autor de "Pão e circo", romance agora lançado pela Afrontamento, o poeta Humberto Rocha vê no cunho estritamente pessoal que caracteriza boa parte da poesia actual - em que a narração estrita do quotidiano substitui o questionamento moral e político - um sintoma "do vazio ideológico reinante". "Há uma vacilação entre a ficção e a representação do Eu como núcleo fundamental da estória dentro da História, conduzindo a uma vacuidade por exaustão do narcisismo decorrente", afirma o autor de "Esqueletos leiloados", convicto de que a poesia actual não pode ter um sentido vago ou impreciso, pois "uma das funções de quem escreve não é apresentar modelos, mas unificar a dispersão do humano enquanto ser singular mergulhado no caos que advém da sua própria condição humana."
Se a função do poeta se mantém, ainda que em novos moldes, exige-se, contudo, um "upgrade" do discurso, defende António Pedro Ribeiro: "Não podemos ler apenas Marx e ouvir Zeca Afonso, como alguns poetas ainda fazem".
Da lição de vida de Neruda - " o último gigante da liberdade total e impossível da poesia do século XX", define Humberto Rocha -, há a reter, sobretudo, "o poeta que cantou o amor como ninguém, mas também o seu exemplo revolucionária e a vida intensamente solidária", acrescenta António Pedro Ribeiro.
A cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
Tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
e eu não sabia
Há quem cante por interesse
há quem cante por cantar
e há quem faça profissão
de combater a cantar
e há quem cante de pantufas
p'ra não perder o lugar
O faduncho choradinho
de tavernas e salões
semeia só desalento
misticismo e ilusões
canto mole em letra dura
nunca fez revoluções
GAC
« Pertenço a uma geração anterior ao pós-modernismo, em que nós aprendemos que ligada a qualquer estética há sempre uma ética. Quando me perguntaram, no princípio dos anos 80, 'você é um cantor de intervenção?', eu disse: 'Somos todos cantores de intervenção'. Marco Paulo é um cantor de intervenção. Intervém à sua maneira e eu intervenho à minha. Agora, não me venham dizer que aquilo é neutro. Não há neutralidade possível quando se está a falar para milhares de pessoas. Está ali um tipo a dizer umas palavras, a tomar umas atitudes e, portanto, a transmitir modelos que levam à reprodução do sistema social tal como ele está, ou a colocar em causa esse sistema social e a sugerir pistas, eventualmente erradas. Nunca se vai impunemente para cima de um palco.»
José Mário Branco in Público a 27 de Fevereiro de 2004.
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