quarta-feira, julho 09, 2008

PSD: Uma evolução na continuidade

Mário Tomé
in, Vírus, Revista Virtual do Bloco de Esquerda

A SOCIAL DEMOCRACIA À PSD TEM UMA GÉNESE PRÓPRIA. ELA RADICA NUM MARCELLISMO EVOLUTIVO E NUNCA DE LÁ SAIU. NÃO SOFRE DO PECADO ORIGINAL DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA. ELA NÃO FOI CONDICIONADA POR MOVIMENTOS DE MASSAS, PORQUE O 25 DE ABRIL NUNCA EXISTIU OU NÃO PASSOU DA EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE!

AS RECENTES ELEIÇÕES NO PSD PROVOCARAM uma avalanche de interpretações e comentários sobre o estado a que teria chegado o partido e de previsões mais ou menos preocupadas sobre o seu futuro.
Ponderou-se mesmo a hipótese de, sem bússula nem rédea, poder vir a desaparecer por evidente desnecessidade face ao papel que o PS representa hoje na prática da política reservada pelo neoliberalismo aos Estados modernos; a saber, a privatização de tudo o que possa ser mercadejado e a organização sistemática e democrática da repressão até à integração na estratégia global da guerra infinita contra os povos.
A mais favorável das previsões terá sido a de Paulo Rangel que considera a actual situação não um sinal de desastre para o PSD mas, pelo contrário, uma premonição de que algo de novo vem aí: a recomposição do sistema político partidário. Rangel deu voz ao secreto desejo “social democrata” de que o bloco central de interesses encontre uma plataforma comum que, explorando a fundo as virtualidaes do neoliberalismo, permita aos negócios livrarem-se de contradições secundárias. Por mais que se reafirme que nunca mais haverá bloco central. Claro, será mais plausível assistir-se a uma recomposição do espectro partidário...
No que ao PSD interessa, dum lado o social-liberalismo aglutinando os sectores mais desinibidos e que não precisam do cristianismo como fundador da Europa e portanto mais abertos à luxúria cosmopolita; do outro lado a direita pura e dura, cabeças juntas e patas para fora reclamando-se da defesa dos valores de Deus, Pátria e Família acima de todas as coisas. A Pátria dos mortos, porque a dos vivos está sempre em construção.

O PÂNTANO ALEGROU-SE COM O COAXAR DAS RÃS
Sendo significativo que pouco mais de seis meses depois de Luís Filipe Meneses ter sido eleito por muito confortável maioria, o PSD já tenha sentido necessidade de mudar de chefe, é ainda mais significativo que se achasse estranho a acesa e por veses pouco delicada luta travada entre os vários pretendentes a... derrotar o PS de Sócrates em 2009. Cada qual mais destituído que o outro de alternativa coerente .Saiu afinal o que tinha de sair: a solução mais próxima do poder, a cavaquista Manuela Ferreira Leite.
O coaxar das rãs no pântano reflectiu a luta entre os interesses instalados de grupos vorazes e parasitários do erário público, mesmo quando se proclamam paladinos da iniciativa privada.
Já no início dos anos noventa Cavaco Silva, sem nenhuma originalidade mas com o peso da sua maioria absoluta, proclamava que só o mercado livre garante a democracia.. Ouvindo o hoje o presidente da República preocupado exactamente com a violência das consequências do que considera a condição sine qua non da democracia – a liberdade do mercado -, e a sua mais fiel discípula, a vencedora das eleições directas no PSD, colocar no centro do discurso a preocupação face à situação de “emergência social”, temos razões para não desanimar: é o PSD no seu melhor.
O PSD nunca foi mais do que isto que nos mostrou nestas eleições internas: a disputa entre interesses pouco claros mas estreitos e cristalizados em torno de figuras que nada mais têm para oferecer que a garantia de que são ganhadoras! Ao ponto de o troglodita das ilhas ter sido apontado, por gente credenciada, como o melhor candidato a Primeiro Ministro porque... “é um ganhador”.
Programa? poder. Ideologia? dinheiro.
O PSD desde muito cedo se habituou ao pragmatismo mais rasteiro, aliás o mais apropriado para assegurar a satisfação dos grupos de interesses instalados ou emergentes nas várias conjunturas, na parasitagem institucionalizada que tem caracterizado os governos em Portugal desde o 25 de Novembro com maior notoriedade desde os dois Governos da AD (PSD,CDS,PPM), culminando com os dez anos de consulado cavaquista.

MEUS FILHOS, O VINHO TAMBÉM SE PODE FAZER COM UVAS
Sá Carneiro não legou verdadeiramente um programa ao PSD. Legou-lhe um guia prático de conquista do poder.
Sá Carneiro quando não tinha a certeza de ganhar, desertava e depois voltava para secar as lágrimas dos abandonados. Quando conseguiu a vitória da AD por maioria absoluta em eleições intercalares em 1979, de imediato preparou o seu grande golpe: um plebiscito para substituir a Constituição de 1976 por uma que permitisse o “reencontro com a nossa história”, interrompida, como já vimos, pelo 25 de Abril.
Assim, tendo mantido a maioria da AD em 1980, recusou apresentar na AR, estando a isso constitucionalmente obrigado, o programa de governo para só o vir a fazer com a vitória desejada e esperada do General Soares Carneiro candidato da AD à presidência da República.
Preparando o golpe, a AD lançou um forte ataque à liberdade de informação, impedindo os Conselhos de Redacção de funcionar, chegando-se ao ponto de os seus testas de ferro na RDP chamarem a polícia para impedir o Conselho de Redacção de reunir.
Grande parte dos melhores jornalistas da RDP e da RTP foram irradiados ou colocados na prateleira sendo substituídos por comissariozinhos políticos e analfabetos.
O próprio Marcelo Rebelo de Sousa dizia no Expresso em Outubro de 1980: “temos, deste modo, à frente da gestão das instituições informativas controladas pelo Estado pessoas escolhidas de acordo com um critério político e que obviamente actuarão de acordo com esse critério”.
A RTP e a RDP, ao serviço da eleição de Soares Carneiro, chamavam ao campo de concentração de S. Nicolau, de que aquele fora responsável, “granja de recuperação de indígenas”.
A trágica morte de Sá Carneiro, dois dias antes das eleições, haveria de poupá-lo ao desgosto de ver derrotado o seu projecto estratégico de uma maioria, um governo, um presidente; por enquanto...

A SOCIAL-DEMOCRACIA SEM DOR
Curiosamente o PSD só teve um papel minimamente progressista quando ainda não existia.
Era apenas um embrião improvável no tempo da “ala liberal” do marcelismo... Sá Carneiro, Magalhães Mota, Miller Guerra, Pinto Balsemão, entre outros, ensaiam uma oposição colaborante com a ANP (a União Nacional renomeada, como a PIDE o foi por DGS). E foi num projecto jornalístico liberal que o grupo investiu no último ano do marcelismo, depois de terem saído da Assembleia Nacional desgostados com a má aceitação das medidas que propunham. Em 1970 viram chumbado um projecto de constituição subscrito por Sá Carneiro e Mota Amaral que preconizava “a abolição da censura e a proclamação da liberdade de Imprensa; a eliminação dos entraves administrativos à liberdade de associação; a extinção dos tribunais plenários, o fim das medidas de segurança sem termo certo que podiam equivaler na prática à prisão perpétua; a limitação da prisão preventiva sem culpa formada a um prazo máximo de setenta e duas horas; a inclusão do direito ao trabalho e do direito à emigração na lista dos direitos fundamentais” entre outras estranhezas para o regime fascista.
A “ala liberal” do marcelismo, manteve-se à espera da evolução na continuidade. Era o tempo de, sob a doce e monótona sonoridade das “Conversas em Família”, Marcello Caetano ir brutalizando ainda mais o regime apagando as ténues esperanças que levantara em 1968 nos sectores da burguesia liberalizadora, ansiosa por poder fazer negócios livremente como quaisquer capitalistas que se prezam. A luta operária e, fundamentalmente, a contestação global à guerra colonial, não permitiam veleidades liberalizantes.
A Europa esperava por “nós” embora já tivesse acolhido o Portugal fascista na NATO há mais de vinte anos. O capital precisava de propagandear as suas virtudes e libertar-se dos condicionamentos que limitavam a sua expansão e restringiam os lucros a meia dúzia de famílias que exploravam barbaramente a mão de obra semi-escrava das colónias.
Ao abandonar a Assembleia Nacional fascista, em 1973, com o famoso “é o fim”, Sá Carneiro dava sinal aos seus companheiros liberais que a luta ia continuar lá fora. O Expresso, acabado de nascer, passou a ser o quartel general do grupo como centro da denúncia e da desmoralização do regime face à elite liberal, tendo cumprido um importante papel.
No entanto a visão da “ala liberal” não a leva até ao ponto, nuclear como se viu, de condenar a guerra em África, que era a corda que segurava o regime fascista nela enforcado.
A guerra colonial definia a linha de ruptura fundamental e de demarcação essencial. Qualquer programa social-democrata mínimo teria que colocar o reconhecimento do direito à autodeterminação das colónias no centro da sua política quando a onda contestatária, com centro na universidade, radicalizava a luta contra a guerra colonial, o eixo principal da luta anti fascista desde as greves académicas de 1962 e que iriam culminar nas de 1969, réplica nacional do Maio de 68.
Sá Carneiro e os seus passaram de liberais marcelistas a social-democratas como quem bebe uma imperial com tremoços.Elaboram um programa vagamente social-democrata para conservadores, sem raizes, nem tradição nem ideias consolidadas. Uma alta burguesia com ímpetos modernizadores – diferenciada do fascismo já podre – disposta a aguentar-se nas vagas da revolução, certa de que ela não duraria muito, criou o PPD conservador, social democrata no verniz, populista, caciquista e golpista na essência. Escreveram o programa, em Novembro de 1974, com as banalidades aprendidas nos manuais de ciência política das faculdades de Direito de Lisboa, Porto e Coimbra e depois num pragmatismo avassalador praticaram a política do marcelismo sem Marcello logo que o 25 de Novembro os libertou da pressão social revolucionária que os constrangera ao ponto de proclamarem o socialismo como o pai de todas as coisas boas.
Magalhães Mota, Jorge Miranda, Vilhena de Carvalho, Cunha Leal, entre outros intelectuais de relevo, 37 ao todo, que haviam aderido ao PPD na convicção de estarem a dar corpo a um projecto social-democrata, viram-se obrigados a sair, em protesto contra o pragmatismo e o manobrismo de Sá Carneiro, e a formarem um Agrupamento Parlamentar, a Associação Social Democrata Independente (ASDI).

O 25 DE ABRIL NUNCA EXISTIU?
Os sucessores de “ala liberal” organizados no PPD nunca conseguiram ir além da teoria de que o 25 de Abril não teria sido necessário.E, perante a ostensiva evidência dos factos históricos, tentaram escamotear aquilo mesmo de que vinham a queixar-se: a revolução do 25 deAbril, da qual nem o cravo quiseram resgatar. Sem receio de contradizerem o slogan dos dois Carneiros, de “reencontro com a história”. Para tal elaboraram a subtil explicação de que tudo não passara de uma evolução (na continuidade?...)
Em 1996, Marcello Rebelo de Sousa confessava-se “fascinado pelo papel de Spínola na transição”. A evolução vai passar a ser para o PPD/PSD a bandeira comemorativa do 25 de Abril como se encarregou de teorizar e servir na propaganda do governo de Durão Barroso, o historiador António Costa Pinto.
A evolução na continuidade estava (e está) de tal forma entranhada nas hostes do PPD que em Abril de 1992, Cavaco, depois de a ter negado a Salgueiro Maia, concedeu a Pides uma pensão por “altos serviços prestados à Pátria”.
Francisco Sousa Tavares, que fora deputado do PSD, reagiu na Capital, o jornal de que era director,: «Este escarro em tudo o que representou a Revolução de Abril ressoará muito tempo em todos os que sofreram, em todos os que foram perseguidos pela PIDE, em todos os que prestaram à Pátria o excelso serviço de luta pela liberdade, com sacrifício da sua vida, do bem-estar, da carreira e da sua própria segurança» Com o mesmo sentido de Estado tal distinção já tinha sido concedida por Cavaco em 1987, ao capitão Maltez Soares da Polícia de Choque fascista e, em 1988, a outro agente da PIDE, Fernando Ferreira Alves.
Não podemos, pois, admirar-nos por, no passado 10 de Junho, o PR ter afirmado com tanto vigor querer “sublinhar acima de tudo a raça, o dia da raça, o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades”.
Ideologicamente o PPD esteve, desde o primeiro dia, pronto para abraçar de alma e coração o neoliberalismo de Reagan e Thatcher que aí havia de chegar.
Exactamente no auge da investida neoliberal, o PPD crisma-se, sob a orientação de Cavaco: Partido Social Democrata. A social democracia à PSD tem uma génese própria. Ela radica num marcellismo evolutivo e nunca de lá saiu. Não sofre do pecado original da social-democracia europeia. Ela não foi condicionada por movimentos de massas, porque o 25 de Abril nunca existiu ou não passou da evolução na continuidade!:
“Na evolução verificada ao longo dos últimos quinze anos é patente a diferença na génese e na afirmação da social-democracia portuguesa relativamente às suas congéneres europeias.
Estas, de um modo geral, e por terem surgido e se terem afirmado quer no final do Séc. XIX ou no início do século XX, quer em períodos subsequentes à queda de totalitarismos de direita, assumiram a defesa de opções claramente influenciadas por esse condicionalismo envolvente.
Tal condicionalismo foi marcado pelos movimentos de massas e por contradições aparentemente irredutíveis entre classes e grupos sociais, bem como pela influência do marxismo, revestindo muitas vezes cariz anticapitalista, antiliberal e antiparlamentar e postulando uma acentuada intervenção do Estado na vida económica e social”.1

Os legítimos herdeiros da “ala liberal” marcelista puderam enfim retornar às suas raízes . “Reencontram-se com a sua própria história”, como queria Sá Carneiro quando apoiava o ex-responsável pelo Tarrafal angolano a presidente da República em 1980.
A história mais recente do PSD, desde o apoio empenhado ao crime contra a humanidade que é a guerra com que Bush arrasou o Iraque, à fuga de Durão Barroso para Bruxelas, à tomada de posse de Santana Lopes como primeiro ministro por sucessão dinástica sem escrutíneo do próprio PSD, até Meneses capaz de tudo e do seu contrário e agora Manuela Ferreira Leite obrigada a lembrar-se dos pobrezinhos por não ter qualquer saída face a quem faz melhor que ela o que ela própria defende, tem sido a história do pragmatismo, da ganância mais rasteira. Desde as autarquias ao poder central. Mas sempre sob a bandeira libertadora dos EUA. A defesa de Portugal como protectorado dos EUA (Quadratura do Círculo, 13/6/08) foi a mais recente demonstração de fidelidade aos princípios por parte do inspirador e teórico de Manuela Ferreira Leite, senão mesmo de Cavaco, José Pacheco Pereira.

PAS DE DEUX
Depois da AD lançar as bases para as privatizações sustentadas, o Bloco Central formaliza na política o que já vinha sendo desde o 25 de Novembro a afirmação mais ou menos conturbada da preponderância dos grandes interesses financeiros assente nos dois grandes pilares da comunidade, o PS e o ainda PPD.
A consolidação do projecto precisava de uma solução política firme que não se compatibilizava com as hesitações inerentes a uma governação bicéfala: Mário Soares e Mota Pinto.
A história é conhecida, carro novo, rodagem, Cavaco ganha o congresso do PPD para ir explorar a sementeira deixada pelo Bloco Central.
O seu consulado de 10 anos é de arrebenta a bexiga:
a revisão constitucional de 1989 com o PS, abre as portas à privatização e liberalização total da economia e lançamento das bases do casino nacional pela reconstituição (melhor dizendo reforço) do poder das grandes fortunas (vindas quase todas do fascismo) que passam da indústria para a finança, indemnizações chorudas e iníquas aos novos pobres que o 25 de Abril tinha criado: Quina, Champallimaud, Roquete, Espírito Santo, etc. Liquidação das pescas, da rede interior dos caminhos de ferro, lançamento das bases do negócio do ensino superior privado (para encher a mula a professores da dita ruça) com 350 milhões de contos retirados ao ensino público, lançamento do ataque em forma ao SNS, liquidação da marinha mercante e das pescas, da indústria naval, etc.
Os reinadinhos de Durão Barroso e de Santana Lopes, são brincadeira de crianças comparados com a campanha mortífera ensaiada com o Bloco Central e conduzida com mão de ferro por Cavaco Silva, o mesmo que hoje se preocupa com a pobreza. Que bom criar pobres para podermos ajudá-los!
Passaram trinta anos de alternância em que PS e PSD se acusam mutuamente de fazerem coisas bem piores quando estão no governo!...
A grande vitória do PSD coincide exactamente com o seu canto do cisne: quando finalmente a vida lhe dá razão - a “ala liberal” hoje faria boa figura - é quando o PS no governo o torna irrelevante. O PS ganha perdendo os socialistas; o PSD ganha perdendo quase a razão de existir. De qualquer forma esteve certo mais cedo.
Agora é uma questão de saber fazer. E Sócrates sabe fazer melhor.
Vencidas as eleições com um terço dos militantes, Manuela Ferreira Leite vai andar por aí a proferir banalidades com perfume social.
O grande aglutinador do PSD actual só poderia ser Sócrates pois é ele quem detém o poder executivo e cumpre o programa da finança. Quem sabe? Na prática, tem sido com ele que se cumpre o projecto estratégico com que sonhou Sá Carneiro e o próprio Cavaco: uma maioria, um governo, um presidente.
E vamos a ver quais serão as hostes apoiantes de Cavaco em 2011.

NOTA:
1: Programa do PSD aprovado no XVI Congresso, 13-14-15 de Novembro de 1992

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