quinta-feira, julho 24, 2008

Compaixão


Enquanto procurava a letra da canção "Socorro" de Arnaldo Antunes, encontrei um texto que fala da canção, e que por ter gostado, partilho convosco.

O texto encontra-se publicado aqui e é o seguinte:

Compaixão

Fátima Regina Flórido Cesar de Alencastro Graça

Maria, 19 anos, queixa-se de tédio e sentimento de vazio. Na experiência com ela, a analista vê refletida sua própria adolescência: "a palavra do paciente pode funcionar como interpretação do recalcado do analista" (Fédida).


"Pessoas pertencidas de abandono me comovem:

tanto quanto as soberbas coisas ínfimas."

Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa.

Maria! Maria!


...Tudo começou com a chegada de Maria. Ou melhor, eu que cheguei até ela. Antivirtuosa, anjo às avessas. "Não sou simpática. Não sou amorosa. Por que você gosta de mim?" Outra vez: "Por que você gosta tanto de mim?".

Porque Maria é daquelas moças, antiboa moça, anti-Patricinha, que mal consegue sustentar um sorriso. Rosto crispado de angústias que não se disfarçam. E se existem esforços para disfarçar... Ah! Em vão! Mas não pensem que tenho aqui a virtude do amor ao feio e ao torto e ao impuro. Maria é meu anjo torto, é verdade (um dia me falara de um quadro – que gosta muito – de anjos distorcidos. Você anjo distorcido; você que disfarça sua bondade). Quando olho Maria (com todos os meus olhos, com tudo que é possível ser visto por mim), enxergo / suspeito / a beleza / a potência que é (in) visível em Maria encoberta, as forças, a beleza de turbulências e trevas.

Para mim Maria é encantadora; e tem o encanto – não de almas fáceis – mas dessas subjetividades aflitas, "vida a vida", "móvel-mar..." Lolita maldita! O encanto vem dali onde acredito na saída, na crença de que a crise é caminho/passagem para a não permanência no mesmo. Eu carrego a esperança que Maria mal experimenta e me alegro tanto. O encanto vem dali onde nossas juventudes se entrelaçam. Nossos dezenove anos, sua juventude transviada, minha juventude quase transviada. Perdições, paz que não vem de graça, de quando se nasce e pronto. Minha adolescência veloz comparece e sua adolescência grita de dor:

"Dezenove anos. Não fiz nada! Tudo errado: má aluna, má filha, má amiga. Só revolta, uma fome permanente de detonar".

E os livros que tanto lê? As músicas? Às formas ela se rebela. Qualquer forma aprisiona? Ódio às formas e depois o vazio! Por que não tem valor aos olhos de Maria a matéria informe dos livros, poesias, devaneios? O sonho não é capital. "O que vale ser sensível? Meus amigos gays, amigos loucos, drogados: Não há salvação!"

(Calma, garota! e eu tenho que controlar-me para não devorá-la com cuidados e esperança e lembranças. Vai dar tudo certo, alguém já me falou um dia e eu tento silenciar.)

Não sei o tamanho da angústia de Maria. Deve ser grande, porque a dor já se mostra no rosto. As "esquisitices internas" já se fazem visíveis, nos gestos impensados, nas respostas atravessadas, nas interrupções de conversas. E sempre uma tentativa de sorriso, um esboço que não vinga, que não se sustenta. Maria. Maria só dor. (Cuidado, vê se não a atropela com sua alegria! Calma garota, calma eu!).

Gosta muito de Clarice (Lispector) (aqui na cidade é verdadeira raridade: uma menina com tais interesses!). As anti-heroínas claricianas, Joana, Sofia e Maria podia ser mais uma.

Na primeira sessão, a primeira pergunta: Você acredita em Deus? Você acredita em Deus? Em busca da fé. "Ora sou rebelde, ora visto uma saia de seda nas bodas de minha mãe. Cada hora sou de um jeito". (Mas, garota onde te ensinaram que nós somos apenas um?)

Às voltas com sua indiferença. "Sou má". Sua mãe infeliz chora a juventude perdida, chora ouvindo Roberto Carlos chora os mortos, os doentes, os infelizes. "Eu sou insensível".

A indiferença de Maria será a indiferença oculta de vulcões? Ou será mesmo a indiferença o "berçário da compaixão?"

Ajude-me a não atropelá-la com meus dezenove anos. Vamos aprender juntas a aguardar o sentido... Um tempo/espaço vazio, compartimento vizinho do ódio (ódio ao preconceito, à formas não autênticas de vida. Quando qualquer concessão à máscaras pode significar a morte).

Que eu sobreviva à indiferença e ao ódio de Maria!

Que o mundo sobreviva....

Que Deus que Maria tanto procura.

Foi então que chegou de outro tempo (de minha própria adolescência) a lembrança de Abraxas... Esse Deus serviria para Maria?

Tudo começou...

Abraxas


"A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas."1

Meus encontros com Maria me remetem à minha própria adolescência, muito mais que qualquer outra adolescente que até hoje eu tenha atendido. Lembrei-me então de Hesse, autor que Maria não conhece. Lembrei-me de Abraxas, um deus que talvez comovesse Maria.

A melancolia de sua mãe deita-se como uma sombra em cima de sua vida. Assim repudia o bom e o piedoso, que identifica na figura materna. Abomina as sensibilidades piegas. Hard! Punk! Adora "Tarantino" (Quentin). "Eu sou feita de lama imunda"2 . Busca destruir o "mundo luminoso", e apropriar-se da maldade (agressividade): "minha maldade vem do mau acomodamento da alma no corpo. Ela é apertada, falta-lhe espaço interior"3, que sua mãe varreu pra baixo do tapete da vida e mais e mais quem sabe, as gerações que antecederam a mãe e sua própria tristeza. Destruir (até) os mundos de seus ancestrais4 . O mundo escuro é onde se refugia com amigos dilacerados. Mundo das drogas (eventuais?!) e dos bares sujos. "A feiúra é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio como um amor de igual para igual. E desafio a morte"5 . Chora num show de Marisa Monte assim como sua mãe chora com Roberto Carlos.

"Eu não gosto do bom gosto

Eu não gosto do bom senso

Eu não gosto dos bons modos

Não gosto.

...

Eu gosto dos que têm fome

Dos que morrem de vontade

Dos que secam de desejo

Dos que ardem..."6

Renato Russo, Cazuza, Clarice, Pessoa, Adélia Prado, Fernanda Young, Arnaldo Antunes, Machado de Assis... "Beleza de escuras" (Clarice lhe diria).

Mas no mundo dos sensíveis não haverá lugar para a alegria?

Foi assim que lembrei dos dois mundos entre os quais, Sinclair, o jovem amigo de Demian, vivia:

"Dois mundos diversos ali se confundiam; o dia e a noite pareciam provir de pólos distintos.

Desses dois mundos, um se reduzia à casa paterna, e nem mesmo a abarcava toda; na verdade, compreendia apenas as pessoas de meus pais. Esse mundo era-me perfeitamente conhecido em sua maior parte; suas principais palavras eram papai e mamãe, amor e severidade, exemplo e educação. Seus atributos eram a luz, a claridade, a limpeza. As palavras carinhosas, as mãos lavadas, as roupas limpas e os bons costumes nele tinham centro. Nele se cantavam os coros matutinos e se festejava o Natal. Nesse mundo havia linhas retas e caminhos que conduziam diretamente ao porvir; havia o dever e a culpa, o remorso e a confissão, o perdão e as boas intenções, o amor e a veneração, os versículos da Bíblia e a sabedoria. Nesse mundo devia-se permanecer para que a vida fosse clara e limpa, bela e ordenada.

O outro mundo começava – curioso – em meio à nossa própria casa, mas era completamente diferente: tinha outro odor, falava de maneira diversa, prometia e exigia outras coisas. Nesse segundo universo havia criadas e aprendizes, histórias de fantasmas e rumores de escândalo; havia um onda multiforme de coisas monstruosas, atraentes, terríveis e enigmáticas, coisas como matadouro e a prisão, homens embriagados e mulheres escandalosas, vacas que pariam e cavalos que tombavam ao solo; histórias de roubos, assassinatos e suicídios... enfim, por todo lado brotava e fluía esse outro mundo impetuoso, em todo lado menos em nossos aposentos, ali onde estavam meu pai e minha mãe. E isso era magnífico. Era maravilhoso que ali em casa houvesse paz, ordem, repouso, deveres cumpridos e consciência tranqüila, perdão e amor...; mas era também admirável que existisse aquilo tudo mais: o estrepitoso e o agudo, o sombrio e o violento, de que se podia escapar imediatamente, refugiando-se quase de um salto no regaço maternal."7

Maria não quer uma "bondade fácil". Até porque não pode, já que não tolera falsas soluções. Apresenta uma "moralidade feroz"8. Busca criar, em cima do que destrói.

Foi por isso que pensei em Abraxas, o deus de Demian e Sinclair, que reunia em si o mundo luminoso e o mundo escuro: "divindade dotada da função simbólica de reunir em si o divino e o demoníaco"9.

Na verdade, o que quero dizer com isso é que para Maria "construir" (ela assim se queixa, que nada faz, nada cria) teria/tem que acolher em si sua própria destrutividade. Ela não tolera deuses piegas. Que fé procura?

(A busca da esperança). Segundo Winnicott, a construtividade precisa estar fundada no sentimento de culpa em relação à aceitação da própria destrutividade. Para chegar ao "Deus da bondade pura" Maria precisa atravessar o inferno de sua própria maldade e mesmo de seus não-sentimentos. (Ah... Adélia Prado ensina: "O inferno também está em Deus"). Para ela não há a facilidade da piedade e se existe um caminho de comunicação com o outro este só pode desembocar/desabrochar na compaixão. Quando assusta/aterroriza sua mãe com sua parte maldita é para ser aceita em sua totalidade (como diz Winnicott, os pais devem aceitar que os filhos se encontrem em sua totalidade, e não apenas em seus aspectos construtivos).

Rebelde como sua mãe fora um dia e depois nevermore. A rebeldia em sua mãe transformou-se em amargura: um sentimento de não existência, de infelicidade. Adeus à sensualidade.

Amor impiedoso, a destruição fazendo parte do amor. Por isso Clarice: Maria que podia ser Sofia, que podia ser Joana, as anti-heroínas com sua "paixão pelo mal", com seu "exercício de crueldade"10, que precisam destruir mundos (mundos luminosos? Do bom gosto!) para vir à luz.

O mal irrompe como elemento desestruturador que desorganiza forças estabelecidas, que "bagunça radicalmente coretos", que funda alteridades. E eu preciso sobreviver ao seu não-sentimento ou à sua fúria, ou desdém: "hoje eu não tive vontade de ir". "Por que você pergunta como assim? Odeio quando fala assim: coisa de psicólogo".

O não sentir conduz a um (outro tipo) de inferno: o de não existir e não se sentir real. Ela me oferece a música de Arnaldo Antunes que expressa tão bem sua vivência de vazio e falta de sentido.

A letra diz:

"Socorro, eu não estou sentindo nada

Nem medo, nem calor, nem fogo/ Não vai dar mais para chorar, nem para rir / Socorro, alguma alma mesmo que penada / me entregue suas penas / Já não sinto amor, nem dor / já não sinto nada / Socorro, alguém me dê um coração / Que esse já não bate nem apanha / Por favor, uma emoção pequena, qualquer coisa / Qualquer coisa que se sinta? Tem tanto sentimento / Deve ter alguma que sirva / Socorro, alguma rua que me dê sentido / Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada / Socorro, eu já não sinto mais nada."

A oposição às vezes é o único recurso que se tem para se sentir existindo. Reajo, logo (parece que) eu existo. Mas dura pouco e renovam-se os ataques até que se espere o tempo suficiente de atravessar/transpor a "zona de calmarias"11.

Segundo Winnicott, os adolescentes rejeitam falsas soluções ou "curas imediatas", ao invés, vêem-se obrigados a "transpor uma espécie de zona de calmarias, uma fase em que se sentem fúteis e ainda não se encontraram"12. Os pais e a sociedade não podem se apressar, e tentar "curá-lo de sua adolescência".

É preciso tempo.

Como disse Françoise Dolto, referindo-se aos adolescentes, "nem tudo que tende para frente é porque vai cair". Penso que Maria tentou várias soluções, como por exemplo, sua casca áspera e dura, para evitar.

O colapso


Noites sem dormir. Dias sem fome. Angústia, medo de multidão, falta de ar, medo de... medo de.... e "medo puro". Choro compulsivo sem motivo. Um grande susto: "nunca me aconteceu isso! Não sei porque choro sem motivo". No meio do filme De olhos bem fechados, pânico. Acho que vou morrer, implora aos pais que a levem ao hospital. Alguém sugere que vá a um psiquiatra, que tome remédio. Ela quer diminuir a dor. Os cuidados da mãe (que está apavorada) a tranqüilizam um pouco. Aos poucos a dor ganha um contorno; a agonia, pensável. Não é mais possível espernear no colo como sempre. Está cansada (como Clarice no vídeo que tanto a emocionou). Teme enlouquecer.

A mãe por sua vez busca desesperadamente oferecer aquilo que Maria necessita.

Para Winnicott, "a organização que torna a regressão útil se distingue das outras organizações defensivas pelo fato de carregar consigo a esperança de uma nova oportunidade de descongelamento da situação congelada e de proporcionar ao meio ambiente, isto é, o meio ambiente atual, a chance de fazer uma adaptação adequada, apesar de atrasada"13. Penso que Maria está se/nos dando uma chance, de tentar oferecer um cuidado adequado.

A falência das defesas, das forças falseadas.

Numa de suas noites de terror (Por que à noite o pavor? – "O entardecer é o desembocar de todas as ausências"14) vai com sua grande amiga dormir na casa dos pais num casebre (de chão de terra) e lá recomeça o pânico. A mãe da menina – "gostei tanto dela, eles são simples, sabe" – lhe oferece chá de erva cidreira explicando que é calmante. (Até então falava: "nada me acalma, 'Olcadil’ pra mim é igual a água"). Tranqüiliza-se. Agora aonde vai, leva um pacote de chá de erva-cidreira.

Volta e meia fala: "eu quero pouco eu quero o simples. Um dia meu tio perguntou: ‘o que você pedir de aniversário eu compro.' Mas eu não quero, quero apenas que você veja algo e pense ‘isso parece com Maria". É o gesto necessário e exato que procura.

A falha da analista ocorre principalmente quando não se corresponde à sua fome do essencial. É quando, ela muito apropriadamente, "debocha" de mim, de qualquer coisa que "não cheire a verdadeiro"... Se me equivoco e sou desastrada nos gestos, desperdiço seu pedido: "O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno"15.

Pede sessões extras. Chega ferida, quase mansa, suas unhas-garras não mais arranham, chora e diz que nunca falou "eu te amo" ou "eu gosto", sabe de sua própria aspereza. Numa tentativa de conviver com o "mundo luminoso" vai a um churrasco com "pessoas normais". O incômodo de conviver não é porque os outros, aqueles do "mundo luminoso", são babacas. Por trás do sentimento de superioridade: "dói porque eles experimentam uma coisa que eu não conheço: felicidade". É como se dissesse:

Eu sou humana, cara!


"De que você pensa que são feitas as minhas mãos? De ferro? De madeira? De cimento? Elas são feitas de carne, cara. Eu sou humana, cara. Devo gritar isso? Sou humana. Está me ouvindo? Sou humana. Minhas mãos são feitas da carne que dois pregos podem atravessar furando buracos a caminho da madeira da cruz. Minhas mãos são feitas da carne que ejacula sangue, sou humana, cara."16

O mundo apresentado a Maria foi/é um mundo inóspito, cruel, uma vida sem brilho, onde o desencanto é o único horizonte possível. O processo de desilusão longe de ter sido lento e gradativo, desenvolveu-se veloz e absoluto. Se o pânico corresponde a "um estado psicopatológico que se instaura quando não houve as condições para uma subjetivação tolerável da condição fundamental de desamparo"17, no plano da articulação simbólica, um ataque de pânico estrutura-se como um pedido transcendente de amor, dirigido a um "Outro idealizado e onipotente, colocado numa posição divina que garantiria pela sua ternura a proteção do sujeito contra o desamparo"18.

Ela escreve e me dá:

"Pânico"


Hoje minha respiração parou

momentaneamente

e nos dois segundos em que chorei

por falta de vida

A morte dolorosa que imaginei não aconteceu

Por duas vezes eu perdi o sol

a chuva que caía

perdi a batida lenta do meu

coração

A batida dos carros na esquina

Deixei de ver o momento

e só senti a escuridão

e a escuridão não tem cheiro

de flores

apenas dois segundos

e vinte anos se passaram

Como se não pudesse viver mais vinte anos

e vinte anos de existência

eu perdi durante dois segundos

não sorri com a passagem de menina

não sofri com a falta do menino

não consegui ver da janela

a bicicleta que corria

e os dois segundos se passaram

e eu tive mais dois segundos para viver".

Quando perguntei se podia incluir o poema "Pânico" num trabalho, ironicamente me questiona: "Por quê? Se você tem a Clarice?".

Flor de cactus, pensei.

Mãe perua – filha trash


Mário Eduardo Costa Pereira adverte ainda que a noção de desamparo não deve deixar de fora a dimensão sexual: a crise de pânico emerge no encontro com a falta de garantias frente à própria pulsionalidade.

Uma das grandes questões/dores da mãe de Maria se liga ao não vivido no plano sexual. Na juventude, linda saindo e vista como puta por sua própria mãe. Depois engorda e lamenta o tempo perdido, o amor não encontrado, o casamento-vazio sem emoções. A filha, de seu lado, que nunca se apaixonou, que se deita e depois nem lembra que sexo existe.

O morrer-em-vida de sua mãe cai sobre sua vida e Maria se sente sufocada, desaprovada em seu estilo quando a mãe insiste: "coloque um batom. Parece uma mendiga". Ao menos, os anéis, vários, que brilham nos dedos. Único luxo? A mãe que a sufoca com tantos presentes que nunca usará, apenas os anéis. Sua mãe que queria ser "perua". Fica confusa por causa do ódio à mãe, já que esta é tão presente e quer tanto que ela fique bem. Mas não sabe como. (Com carro novo? Roupas? Livros? Anéis).

Idas e vindas na relação com a mãe. Confrontos violentos. Por que não é possível ser igual às outras garotas? Por que os amigos não podem ser normais? E Maria, entre a culpa e a insistência aflita. Não é uma busca qualquer: é a obstinada e desesperada busca – "de arrancar da mãe o direito de ser ela própria19".

E o pai? Tudo sobre a mãe. Quase nada sobre o pai.

Saudade20


Maria observa o mundo com um olhar de estranhamento. E esse olhar, que já existia na infância (do pouco que se lembra dela), se acentua na adolescência – tempo em que desembocam as angústias (e as ausências). (O uso freqüente dos óculos escuros ocultando o olhar terrível!). Olhar de asco diante do não-humano. Então o impasse: entre a necessidade (por vezes desesperada) de entrar no mundo e o temor de perder esse olhar/lugar profundamente ético. Será possível acontecer no mundo e experimentar a alegria sem que se traia a sua fome do essencial, sem que se perca a delicada escuta de qualquer grito parado no ar? Na parede do quarto: "O Grito" (de Munch). O grito. Na parede do quarto fotos e fotos e fotos das "pessoas especiais" que a ajudam a sair do isolamento. Com eles e elas dialoga sobre a miséria humana e as alegrias possíveis.

Quando partem, o despencar no vazio. Para onde as pessoas vão quando partem? Por que te vas? A pior dor, a dor que mais dói é a saudade. Ah... como é lindo o que Clarice diz... (Os dois portais por onde Maria entra no mundo: pela ética e pela beleza. Às vezes beleza terrível):

"Saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."21

Enquanto espera, a companhia da poesia...


Eu sempre sonho que uma

coisa gera,

nunca nada está morto.

O que não parece vivo,

aduba.

O que parece estático, espera22


Tem sido na companhia dos poetas, da literatura, de filmes, de alguns poucos amigos (tão perdidos e sensíveis quanto ela) que Maria encontra interlocução. Como diz Safra, o rosto humano não é para ser encontrado apenas na mãe, mas ainda na cultura, no mundo, no social: "Há pacientes que vivem na queda de si mesmo e na queda do mundo. A poesia tem um valor semelhante ao ícone: devolve o rosto humano ao ser humano. É possível encontrar um poeta (como Fernando Pessoa ou Clarice) antes de encontrar alguém como interlocutor. É uma estética que revela o ser."23

Gilberto Safra, em seu livro A face estética do self enfatiza o estético – o sensorial – "objetos na sua materialidade, e nas suas formas, os corpos, os gestos, as dimensões do mundo – tempos, espaços, sons, cores, movimentos, ritmos – são tratados como as raízes e os ingredientes básicos de processos de constituição do self."24

O autor ali esclarece que utiliza o termo estético "para abordar o fenômeno pelo qual o indivíduo cria uma forma imagética, sensorial, que veicula sensações de agrado, encanto, temor, horror, etc... Estas imagens, quando atualizadas pela presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos ou aspectos de seu self, podendo então existir no mundo humano"25.

Se a linguagem discursiva é tão valorizada no mundo ocidental e na psicanálise, há também uma evolução do objeto sensorial, ao longo do processo maturacional:

"Há o objeto subjetivo, que inicia a constituição do self; o objeto transicional, primeira possessão não-eu; o objeto de self, articulação simbólica de um estilo de ser; o objeto de self na cultura, conectando o sujeito à história do homem; o objeto de self artístico-religioso, apresentando o vértice estético e sagrado e inserindo o homem na atemporalidade da experiência humana" 26.

Maria e eu temos trabalhado principalmente em torno de objetos da cultura compartilhados por nós duas – nos quais ela se ancora, dando um uso pessoal27, e dessa forma sendo-lhe possível aos poucos tomar contato com sua capacidade criativa. Lugares-espaços-objetos que amenizam a dor do exílio e lhe dão a sensação de: "pensei que até pode ser que a vida valha a pena". Se, porventura, à mãe não foi possível devolver-lhe um olhar humano, os objetos da cultura a refletem.

Isso é tão urgente, que aquilo que não a reflete é repudiado!

Embora interpretações verbais sejam feitas, esse espaço de encontro se dá muito mais em torno desses objetos. Sendo assim, a sessão se apresenta mais como um espaço de experiência, do que de deciframento. Uma vez que o encontro se dá em torno principalmente de objetos materiais as interpretações acontecem na verdade, focando aqueles aspectos do self que são refletidos pelo objeto. Já os lugares-pessoas-objetos que não a espelham são vividos como não-lugares, espaços de abandono e desamparo.

O que eu posso lhe oferecer e o que ela necessita de mim?

Não é qualquer coisa: os cacoetes/códigos pré-definidos são desmontados com ironia, sem dó. "A fala tem que ser um dizer" (Safra). Rumble Fish, que não pode ser aprisionado, que desliza num setting criado a dois, cheio de portas e janelas, com espaço para silêncios e não-comunicação.

Se ela está na porta do mundo, não sou eu que tenho a chave, estou ali como (mais um) "representante da humanidade", sou alguém com quem é possível dialogar. Buscamos juntas compreender seus movimentos e não-movimentos aflitos; mas se o sentido não vem, o melhor é aguardar lendo Adélia Prado ou "praticando silêncios" (não, não – "são os silêncios que nos praticam", como diz Manoel de Barros).

É assim que Maria e eu nos comunicamos em torno do espaço potencial / zona de sonho em que circulam sentidos, objetos compartilhados, livros, textos, discos de Renato Russo, filmes, Adriana Calcanhoto, "cores de Frida Kahlo", "cores de Almodóvar". Um dia, conversando sobre o filme "Cria cuervos" comentei que gostava muito da cena em que o pequena Ana dançava uma música, que eu tinha o disco e o havia perdido. Ela me presenteia com a notícia que o Pato Fu!? havia gravado a tal música e me oferece uma fita cassete.

São oásis. Brechas num mundo não humano, possibilidades sagradas / preciosas de comunicação.

Ana-Maria-eu na dança da dor da perda do amor / Dança de tempos sobrepostos, almas entrelaçadas: chora-se a morte da mãe/do pai e do amante que partiu ou que um dia quem sabe partirá:


"Porque te vas

Hoy en mi ventana brilla el sol

Y el corazón se pone triste contemplando

la ciudad

Porque te vas

Como cada noche desperté pensando en ti

Y en mi reloj todas las horas vi pasar

Porque te vas

Todas las promesas de mi amor se irán

contigo

Me olvidarás, me olvidarás

Junto a la estación lloraré igual que un

niño

Porque te vas, porque te vas

Bajo la penumbra de un farol se

dormirán

Todas las cosas que quedaron por decir

se dormirán

Junto a las manillas de un reloj

despejarán

Todas las horas que quedaron por vivir

Esperarán" (José Luís Perales)

Enfim, Compaixão!


Comecei a escrever sobre Maria pensando em compaixão. Por quê?

Suas queixas de indiferença, ou de maldade, ou de uma sensibilidade não voltada para o fácil me fizeram lembrar o caminho de construção de minha própria compaixão. Também constituída na travessia de desertos de vazios ou vulcões de raivas e desamores. Compaixão que não exclui negativos. Este texto é também um passeio/re-visitação aos objetos que me fizeram companhia na minha travessia adolescente.

Se podemos falar de virtudes necessárias à clínica, a compaixão será das mais fundamentais? Não aquela que é puro sentimentalismo, piedade, ou compaixão vedante (que Dolto diferencia de compaixão estruturante28); mas que se sustenta na identificação com o outro, em sua totalidade (incluindo os aspectos destrutivos): "A compaixão é a simpatia na dor ou na tristeza, em outras palavras, é participar do sentimento do outro"29

Diferente da piedade que ressalta a insuficiência de seu objeto, "a compaixão, é um sentimento horizontal, só tem sentido entre iguais, ou antes, e melhor, ela realiza essa igualdade entre aquele que sofre e aquele (ao lado dele, e portanto, no mesmo plano) que comparti- lha do seu sofrimento. Nesse sentido, não há piedade sem uma par- te de desprezo; não há compaixão sem respeito"30.

A compaixão liga-se com um "respeito fundante" (não moral) pela singularidade da natureza humana que aí está. A compaixão permite a passagem da ordem afetiva à ordem ética.

"Compadece-te e faz o que deves" – passa-se assim da ordem do sentimento ao "que devemos". E se pensamos que em relação ao que devemos – em outros tempos/termos – se falaria em técnica, aqui eu pensaria em ética. Não é um dever senti-la (a compaixão), mas desenvolver em si a capacidade de senti-la.

No dizer de Françoise Dolto:

"A ética do humano, na medida do seu desenvolvimento, leva-o a identificar-se com todos os seres da criação. A ética não é a moral. A moral é um código de comportamento; a ética sustenta uma intenção na sua mira, ela é o desejo e o sentido que dele decorre. A moral, seja ela aplicada de forma agradável ou desagradável, seja ou não nociva para outrem, provém de pulsões. A ética é assunto do sujeito, a moral é assunto do ego; o sujeito funda-se sobre o simbólico, enquanto que o ego está no imaginário, está a serviço do funcionamento."31

Essa compaixão-nossa-de-cada dia que não pode ser desencarnada, como o "amor que não é puro sentimentalismo"32, que se nutre na própria dor e maldade. Que é tolo se não se enraíza na história pessoal (do ódio e do amor). Compaixão resultante do acolhimento dos vários outros de si mesmo. E só assim. Novamente recorro a Françoise Dolto:

"Para 'fazer o bem que se deseja’, é necessário poder falar de seu desejo de mal. Aliás, é isso que a cultura faz, em seu conjunto. Ela permite satisfações imaginárias (arte, literatura, esporte, ciência) e dá apaziguamento aos desejos, ao mesmo tempo que permite um enriquecimento de trocas na sociedade. Há no ser humano contradições, e todo desejo precisa poder ser falado. Há a realidade, há o imaginário, e também há essa vida simbólica que é o encontro de um outro com quem nos compreendemos, e com quem não estamos mais totalmente sozinhos diante de nossas contradições internas."33

Tempo


Ainda que eu falasse a língua dos homens

E falasse a língua dos anjos

Sem amor eu nada seria

(Luís de Camões, adaptação de Renato Russo).


Logo Maria completará vinte anos.

Feliz Aniversário, Maria!

E eu, quarenta.

"Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome"34

Vou parando por aqui e seguindo o conselho de Maria, revisito Clarice, que em sua crônica "Mineirinho" nos diz:

"Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem."35

NOTAS


1. H. Hesse, Demian. História da juventude de Emil Sinclair, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1968, p. 91.

2. M. Felinto, As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p. 55.

3. C. Lispector, Um sopro de vida: pulsações, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1994.

4. Neste sentido, Gilberto Safra vem pensando a "falha ambiental relacionando-a com a história de gerações".

5. C. Lispector, Água viva, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 40.

6. A. Calcanhoto.

7. H. Hesse, op. cit. P. 9-10.

8. D. W. Winnicott, Privação e Delinqüência, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 122.

9. H. Hesse, op. cit. P. 93.

10. Y. Rosenbaum, Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1999.

11. D. W. Winnicott, A família e o desenvolvimento individual, São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 125.

12. D. W. Winnicott, , op. cit., p. 122.

13. D. W. Winnicott, Textos selecionados da pediatria à psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993, p. 466.

14. M. Felinto, op. cit. p. 54.

15. C. Lispector, Para não esquecer, São Paulo, Siciliano, 1994, p. 188.

16. M. Felinto, op. cit., p. 62.

17. M. E. C. Pereira, Pânico e desamparo, São Paulo, Escuta, 1999, p. 370.

18. M. E. C. Pereira, op. cit. P. 370.

19. J. McDougall, As múltiplas faces de Eros: uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. São Paulo, Martins Fontes, 1977.

20. Reflexões enriquecidas por observações em aula (23/09/00) do Prof. Gilberto Safra.

21. C. Lispector, A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 106.

22. A. Prado, Poesia reunida.

23. G. Safra, palestra 2/10/99.

24.. G. Safra, A face estética do self: teoria e clínica, São Paulo, Unimarco, 1999, p. 11.

25. G. Safra, op. cit., p. 20.

26. G. Safra, op. cit., p. 30.

27. G. Safra, op. cit., p. 22.

28. Françoise Dolto fala de "compaixão vedante" e "compaixão estruturante". Compaixão vedante seria aquela "regressivadora", que quer poupar o outro de seus próprios sofrimentos; diferente da outra que implica em estar ao lado, a partir de uma identificação que não seja via culpa.

29. Comte-Sponville, Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 117.

30. Comte-Sponville, op. cit., p. 127.

31. F. Dolto, Dialogando sobre crianças e adolescentes, São Paulo, Papirus,1989, p.112.

32. D. W. Winnicott, Textos selecionados da pediatria à psicanálise, op. cit., p. 352.

33. F. Dolto, As etapas decisivas da infância, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 169.

34. A. Prado, op. cit., p. 155.

35. C. Lispector, Para não esquecer, São Paulo, Siciliano, 1994, p. 186.

Fátima Regina Flórido Cesar de Alencastro Graça é mestre em Psicologia Clínica, doutoranda na PUC/SP, membro do Laboratório de Estudos da Transicionalidade da PUC/SP e professora no curso de Psicologia da UNIP (São José dos Campos).

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