in, Visão
O filme da escola Carolina Michaëlis tem essa virtude: mostra a idiotice em toda a sua nudez. Um regalo para os meus olhos, que aprecio muito idiotice – e nudez ainda mais
Quando este texto for publicado, o leitor já viu várias vezes o vídeo em que uma aluna da escola Carolina Michaëlis dá início a um motim porque a professora de Francês teve a ousadia de lhe confiscar o telemóvel. (Se não viu o filme, digo-lhe que impressiona. Sobretudo porque, enquanto a generalidade dos cidadãos é assaltada na rua, a esta senhora o gang apareceu-lhe no local de trabalho.) Também calculo que já terá tido oportunidade de ouvir várias pessoas a garantirem-lhe que isto, no tempo delas, não era assim. Eu nunca perco uma oportunidade de me juntar a um coro de moralistas (que, normalmente, têm uma afinação irrepreensível), e por isso estou aqui para dizer o mesmo: isto, no meu tempo, não era assim.
Era pior. Sobretudo porque não havia telemóveis. Privados da possibilidade de filmar os seus actos de indisciplina, os alunos do meu tempo tinham muito mais dificuldade em tomar consciência da sua própria idiotia. O filme da escola Carolina Michaëlis tem essa virtude: mostra a idiotice em toda a sua nudez. Um regalo para os meus olhos, que aprecio muito idiotice – e nudez ainda mais. Acredito sinceramente que, depois de verem a figura que fizeram, tanto a protagonista do filme como o magnífico cineasta que captou a acção, lançando a todo o passo estupendas indicações de cena, não voltarão a comportar-se assim. No meu tempo, teríamos continuado. Um alarve que toma consciência de ser alarve insiste na alarvidade? Não creio. E se um alarve cair no meio de uma floresta e não estiver lá ninguém para ouvir, faz barulho? Julgo que sim, e confesso que até espero que se aleije com alguma gravidade na queda.
A verdade é que, se há coisa que nunca muda em toda a História da Humanidade é esta: os adolescentes são parvos em todo o lado. Todos os senhores respeitáveis já foram, numa altura ou noutra, adolescentes parvos. Jorge de Sena começa um livro autobiográfico dando conta da «indisciplina ruidosa» que eram as suas aulas de Filosofi a. Que, notem, decorreram no tempo dele. Tempo esse que é bem anterior ao tempo dos que agora dizem que no seu tempo isto não era assim. Está baralhado com isto dos tempos? Siga para o próximo parágrafo, que é já o penúltimo.
É por isso que a culpa do que sucedeu na escola Carolina Michaëlis, a ser de alguém, é da professora. Ser professor de liceu é das actividades mais insolentemente arrogantes a que alguém se pode dedicar: trata-se de pretender ensinar coisas a quem já sabe tudo. Eu, pelo menos, sabia tudo aos 15 anos. A própria Carolina Michaëlis, que era tão boa senhora, sabia com certeza muito mais aos 15 anos do que quando foi ensinar para a Universidade de Coimbra. Toda a gente sabe tudo aos 15 anos. Só com o passar do tempo se vai descobrindo, com razoável sobressalto, que não se sabe quase nada. Mas há duas ou três pessoas que nunca aprendem o seguinte: o tempo delas, apesar de contar com a sua inestimável presença, não é especial em nada. No meu tempo, aliás, toda a gente sabia isto.
Nota: Não conheço bem as recentes propostas do Ministério da Educação e por isso não sei se, actualmente, posso pronunciar-me acerca de um professor sem o avaliar. Aqui fica, então, a minha avaliação da professora de Francês da escola Carolina Michaëlis, baseando-me apenas nas imagens do vídeo:
Resistência: 17
Capacidade de sofrimento: 19
Equilíbrio: 16
Persistência: 18
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