segunda-feira, maio 14, 2012

Menina dos meus olhos




Fosse a menina dos meus olhos puta
e fornicara com as televisões
as duas novas da greta e da gruta
e as duas velhas pelas mesmas razões

rectangular e omnipresente nesga
que tem pra tudo as melhores soluções
fosse a menina dos meus olhos vesga
logo lhe dera as suas atenções

ai fosses tu menina dos meus olhos
com teus lacinhos e caracóis
a inocência vai nos entrefolhos
e fica a pátria amada em maus lençóis

entram pelas casas sem ser convidados
tempos de antena e outros futebóis
ficaram todos mais bem informados
opinião pública dos o...rinóis

são cus e mamas a dançar de gatas
mailas gravatas dos seus figurões
as euforias ficam mais barata
se domesticam-se as excitações

pobre menina ficas à janela
depenicando as tuas distracções
lavas a loiça fazes a barrela
mas essa merda não cede às pressões

os antropófagos das nossas dores
tomaram conta da aldeia global
fazem milhões a converter horrores
em audiências de telejornal

o insuportável torna-se rotina
e a realidade já é virtual
a dor da gente é inesgotável mina
que lhes rentabiliza o capital

as reportagens e as telenovelas
juntam os trapos pezinhos de lã
com a verdade ali a olhar pra elas
histórias da civilização cristã

já não é sangue o líquido vermelho
que nos reserva o dia de amanhã
e tu menina vais-te vendo ao espelho
e sofres dos dois lados do ecrã

noventa e quatro chegou à cidade
noventa e oito está quase a chegar
fez vinte aninhos a nossa liberdade
já é bem tempo de a desvirginar

e se o dinheiro não dá felicidade
televisões bem a puderam dar
talvez que para manter a sanidade
eu chegue ao ponto de ter que cegar

e a menina dos meus olhos há-de
conseguir ver para além do meu olhar

«José Mário Branco, ao Vivo em 1997», CD2, faixa 3, 1997

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