domingo, fevereiro 21, 2010

Base fechada aos EUA

Janeiro de 1962

Base fechada aos EUA


Reportagem do Diário Insular

Texto de: Rui Messias





Foi a primeira vez que Portugal proibiu a utilização da base das Lajes por aviões norte-americanos, que voavam em serviço para a ONU. O calendário marcava janeiro de 1962 e Salazar, depois de um ano negro, vingava-se assim da administração Kennedy.

A resposta espantou os oficiais das Nações Unidas (ONU), Particularmente os norte-americanos. Era a primeira vez que o governo de Oliveira Salazar proibia a utilização da Base das Lages para a passagem de aeronaves dos Estados Unidos rumo ao Congo, onde descarregariam material necessário à operação das forças daONU naquele teritório africano, mergulhado na guerra pela independência (1960-1966) do controlo belga (que terminaria na conquista do poder por Joseph Mobutu). O calendário marcava o dia 11 de Janeiro de 1962.
"Foi a primeira vez que qualquer restriçãi foi posta aos aparelhos da força aérea dos Estados Unidos para aterrar na base aérea das Lajes, nos Açores", escrevia-se num telegrama da Embaixada norte-americana em Portugal.
Vários historiadores, hoje, acreditam que esta atitude de Salazar demonstra a retaliação do executivo português contra a administração Kennedy, depois de um ano complicado para a política nacional.
O curioso é que os Estados Unidos já tinham sido avisados para esta possibilidade; aviso que, também curiosamente, não partira das autoridades ou da diplomacia portuguesa, mas do embaixador norte-americano em Lisboa.
A 31 de Dezembro de 1961, o embaixador norte-americano em Lisboa, Charles Burke Elbrick, envia para Washington um memorando com o balanço das relações luso-americanas no ano que terminava.
E, nas previsões para 1962, deixava claro: "O problema mais importante que se nos depara em 1962 nas nossas relações com Portugal é a renegociação do acordo da base dos Açores", sublinhava o diplomata. Esta afirmação no fundo, traduzia o resultado de um ano em que a política externa da administração Kennedy enfurecera mais Salazar do que cedera aos seus pedidos.
A nova administração norte-americana olhava para África com outros olhos; depois de vários anos em que Dwight D. Eisenhower (presidente dos EUA entre 1953 e 1961) optara por não questionar a acção portuguesa nas possessões africanas.
Robert Kennedy chegara à presidência dos Estados Unidos um ano antes - tomou posse a 20 de Janeiro de 1961 - e garantira alterar a política americana para África. O que significava o eventual apoio aos movimentos independentistas e, acima de tudo, o combate feroz (embora, muitas vezes, secreto) à influência soviética nos territórios africanos.
Mas Salazar mantinha um trunfo: a Base das Lajes, nos Açores, que os EUA usavam com autorização assinada desde 1954, embora já recorressem à infraestrutura açoriana (que ajudaram a edificar) desde 1944.

O "Santa Maria"
O primeiro confronto entre a nova política africana dos Estados Unidos e a visão "imperial" de Salazar acontece no final de Janeiro de 1961: oficiais norte-americanos sobem a bordo no navio "Santa Maria" e negoceiam com Henrique Galvão, que sequestrara a embarcação para chamar a atenção da comunidade internacional para a política colonialista portuguesa.
Galvão recebe no Santa Maria, uma delegação norte-americana. E a bordo decorre quase uma negociação de Estado a Estado. Galvão teve aqui a sua hora de glória e Salazar uma das suas maiores humilhações, ao ver um dos seus tradicionais aliados a reconhecer legitimidade a alguém que o governo português considerava um terrorista.
Hoje, vários historiadores concordam que o sequestro do navio "Santa Maria" (pertencente à Companhia Colonial de Navegação) marcou o início do fim do Estado Novo, lançando a atenção internacional sobre o regime salazarista e, acima de tudo, a sua acção nas colónias que mantinha em África.
A saga do "Santa Maria" começara na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, dois dias depois da tomada de posse da nova administração americana, liderada por John F. Kennedy.
O paquete de luxo é tomado de assalto em águas internacionais, junto às Caraíbas, por um comando do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), chefiado por Henrique Galvão, ex-militar português. O objectivo era levar o navio para a ilha de Fernando Pó e, a partir daí, lançar a insurreição contra Portugal em Angola.
O governo de Salazar condenou o ataque e classificou-o de "pirataria internacional", pedindo depois apoio a França, Inglaterra e Estados Unidos.
Mas os três aliados (primeiro Paris e, depois, Londres e Washington) - perante o apoio dos seus povos à iniciativa de Galvão - optaram por tratar o sequestro como um assunto político (justificando a maior parte das suas acções com questões e dúvidas sobre o direito internacional), o que enfureceu Salazar.

Um trunfo na manga
Passado o episódio do "Santa Maria", Salazar via-se agora confrontado com os "ataques" americanos nas Nações Unidas.
A ameaça de barrar o uso da Base das Lajes esgrimida pelo governo português perante a atitude americana para com Henrique Galvão não surtira efeito. E os representantes de Washington nas Nações Unidas iniciavam um plano de críticas contra o regime colonialista português.
Durante todo o ano de 1961 (e parte de 1962), os EUA votam constantemente contra Portugal nas Nações Unidas. A par disso, proíbem a venda de armas a Lisboa que tenham por destino as colónias africanas e recorrem a todos os meios para convencer Salazar a alterar a sua política ultramarina no sentido de permitir a autodeterminação dos povos nativos das colónias.
Mas, a meados de 1962, o trunfo "Base das Lajes" volta a ser colocado em cima da mesa: os direitos de utilização da infraestrutura em tempo de paz pelos EUA terminavam no final de 1962 e a administração norte-americana vê-se obrigada a iniciar o processo de renegociação do acordo.
Nessa altura, surge um debate intenso no seio da administração Kennedy: um sector - onde se incluíam os militares - defendia a preservação a todo o custo do acesso às Lajes (considerada "a mais valiosa instalação que os Estados Unidos são autorizados a usar por uma potência estrangeira") e sublinhava que a "perda dos Açores teria as mais graves consequências militares"; outro sector considerava que a importância da estratégia militar não podia ofuscar a importância da auto-determinação dos povos africanos, para evitar a supremacia soviética naquele continente.
O debate "Angola ou Açores" conhece a fase crucial na primeira metade de 1962. É neste período que as teses europeístas (defesa dos Açores) se vão finalmente impor. Este sector vence o debate no seio da administração, a que se junta a maioria conservadora do Congresso, contrária à política africana de Kennedy.
Salazar vence a batalha. Não tanto por seu mérito, mas pela conjugação das necessidades militares americanas com o conservadorismo maioritário no Congresso.
Escreveria John Kenneth Galbraith (economista e conselheiro de Kennedy): "we are trading our African policy for a few acres of asphalt in the Atlantic".

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