Publicada, em 1970, no Cena 7
Daniel Ricardo e Cáceres Monteiro
Estava frio. Por isso, naquela esplanada de Setúbal onde nos encontrávamos, havia pouca gente. "Sou incapaz de funcionar sem engolir um café" - disse-nos José Afonso, com as mãos nos bolsos da gabardina, um ar sonolento. Alguns minutos depois, a promessa cumpria-se. Já desperto, retemperado pela bebida e, afinal, pelo sol que começava a aquecer, José Afonso respondia, abertamente, a todas as nossas perguntas.
- Não tenho um padrão crítico seguro de um especialista em música que me diga se aquilo que faço é uma droga ou uma coisa de relativa qualidade - assim procurou ele situar o valor da sua obra, "o valor daquilo para que fui arrastado".
E que razões o levaram a escolher o caminho pelo qual enveredou?
- Para explicar isso, é necessário regressar aos tempos de estudante, em Coimbra. Eu cantava, então, fados e, algumas vezes, toadas vagamente populares da região.
Com o tempo, José Afonso apercebeu-se de um certo anquilosamento formal do fado de Coimbra, tanto quanto ao aspecto temático como quanto à parte musical:
- Quando se cantava o fado de Coimbra, construía-se um determinado "décor", um estudante de capa e batina, os dois acompanhantes... As serenatas convencionais, com todo este cenário, começaram a parecer-me um pouco artificiais - precisa. E prossegue: "Se o cenário era artificial, o que eu cantava também o era. Pensei, pois, que essas canções tinham de se alargar, de se movimentar mais."
Sobretudo, teriam de se radicar, pensou o cantor, em coisas mais profundas do que um simples "folcore de casta". Embora haja quem pense que só os estudantes cantam o fado de Coimbra, isso não corresponde à verdade: com o tempo, aquele género musical passou a ser cantado também pelas pessoas que vivem na órbita dos estudantes.
- De qualquer maneira, surgiu em mim uma espécie de insatisfação em relação a essas formas tradicionais, a qual coincidiu, aliás, com uma certa evolução mental.
Ao historiarem a vida associativa na sua Universidade, os actuais estudantes de Coimbra costumam referir-se a uma "primeira fase folclórico-fadista". Terá o fado coimbrão permanecido nessa fase da vida associativa, resultando daí o referido anquilosamento temático e formal?
Duas forças
José Afonso crê que a asserção não é exacta porque, segundo afirma, a atitude conservadora, que se expressa num determinado folclore, musical e poético, nem sempre coexistiu pacificamente, em Coimbra, com uma atitude "progressista". Essas duas forças ("uma convencional, com a sensibilidade à flor da pele, que se exprimia em formas anquilosadas, e outra mais agressiva e ambiciosa, que procurava colocar os esquemas da vida associativa a par das ideias de certos meios do exterior") - essas duas forças sempre se digladiaram.
José Afonso pensa que os actuais intérpretes do fado de Coimbra se limitam a apresentar composições do tempo de Paradela de Oliveira ou mesmo dos cantores clássicos. No entanto, não reivindica, para si, um lugar de inovador. Afirma que já existia uma série de estímulos anteriores, que excediam o âmbito do folclore de casta. E recorda Edmundo Bettencourt, hoje esquecido, que foi um cantor muito importante em Coimbra, um elemento vivificador. Como sublinha o autor de "Os Vampiros", Bettencourt introduziu temas de canções populares beirãs e açorianas no repertório coimbrão. O próprio José Afonso sentiu a sua influência, que se reflecte na "Canção da Saudadinha" e nas canções da Beira Baixa, por exemplo, e lembra também Rogério Boavida como um dos cantores que procuram ultrapassar o âmbito restrito do fado de Coimbra. Conhecedor dos interesses criados em públicos que não integram, apenas, as massas estudantis tradicionais, José Afonso foi alterando e renovando os antigos temas musicais. Infringiu, em suma, certas formas ingénuas de fazer música.
- Hoje estou num beco sem saída, não sei para que lado me hei-de virar, porque sou um ignorante em matéria de técnica musical, e a partir de um determinado grau de responsabilidade já é necessário não fazer as coisas em cima do joelho.
José Afonso atravessa "uma fase de cepticismo quanto à função da canção como processo de despertar consciências". Segundo afirma, "há meios em que a canção se revela um modo salutar, simples e directo de estabelecer uma convivência construtiva, de contribuir para uma melhoria das relações humanas". Não consegue, porém, "sugerir um tipo de coisas mais profundas".
- A canção, hoje em dia, é um pouco masturbativa: é um processo em que sai o tiro pela culatra. As pessoas começam a classificar as letras, a dividir os textos para verem se são ou não válidos. Às tantas, o cantor fica metido num beco sem saída. Além disso, as pessoas que ouvem as canções utilizam-nas como salvaguarda das suas próprias consciências, transferem os seus problemas e responsabilidades para o cantor, que se limita, como cantor de "music-hall", a ser um bem de consumo. Com a agravante de que um cantor integrado num meio profissional de "music-hall", além de ser um bem de consumo, transforma-se num alibi de consciências.
O importante, segundo José Afonso, é que se faça música de qualidade, incidindo, inclusivamente, nos temas tradicionais, líricos ou amorosos, desde que esses temas sejam, efectivamente, tratados de uma forma digna.
- Há quem pense que a arte de determinado tipo é aquela que vive de slogans considerados, aprioristicamente, possuidores de certo conteúdo político. Ora, eu penso que o tema amoroso, como qualquer outro, pode ser tratado numa perspectiva objectivamente interessante. A arte panfletária não é, necessariamente, revolucionária. Há muita gente que ignora que nós não temos arte directamente contestatária. Folheando os nossos romanceiros, os nossos cancioneiros, não se encontram canções que ponham em questão uma dada estrutura político-social. Nem sequer as canções de escárnio e maldizer. Dentro do nosso património cultural popular, existe uma aceitação implícita das estruturas vigentes. Quando se fala de arte popular e se pretende que um cantor traduza, de uma forma quase dialéctica, em termos precisos, uma situação social, e proponha, através da sua canção, um plano, eu penso que se está a pôr o carro adiante dos bois. Antes das canções, há muita coisa a fazer. Os indivíduos que afirmam que a canção de protesto foi recuperada, pensam que as canções são "engagés" quando, afinal, as pessoas (o cantor e o público) é que são "engagés".
Cantar para quem?
Em sua opinião, existindo uma comunidade de pontos de vista entre o público e o cantor, aquilo que a canção representa está para além do seu próprio conteúdo formal, reside na capacidade de as pessoas mutuamente se movimentarem, servindo-se de um pretexto.
- Poderá parecer pretensioso, mas, efectivamente, eu gostaria de cantar para as pessoas para quem a canção possa representar alguma coisa. Mas isso não é possível, porque, se eu fosse cantar para o ambiente em que vivem, como, aliás, já tenho feito, essa minha interferência, essa minha irrupção soaria como um acto de paternalismo. Isso sucederia até porque a minha presença não seria contínua.
O cantor procura acender um cigarro mas o isqueiro falha várias vezes. Ele não perde, porém, o fio à meada:
- Qual é a música que tem audiência junto dessas pessoas? A do conjunto da Maria Albertina e não as composições do ilustre Zeca Afonso ou outro do estilo.
José Afonso gostaria, evidentemente, que essa situação se modificasse e que a sua acção e a de muitos outros cantores fizesse com que as pessoas, tempo e elementos "inter-franqueassem" distâncias e o público ficasse em condições de aceitar as canções que interpreta, ou de as criticar, ou, ainda, de as ultrapassar, considerando-as um subproduto em relação às próprias exigências.
Há quem afirme que a obra de José Afonso tem evoluído e que as preocupações de antigamente cederam o lugar a temas mais livres...
- Tenho sempre dificuldade em rememorar fases e também uma certa aversão pela canção de conteúdo directo, que pretende sintetizar as mais diversas situações de uma forma esquemática. Isso parece-me um bocado didáctico.
Ele não pretende transmitir conhecimentos; quer, apenas, utilizar as formas de sensibilidade existentes, aproveitá-las para conquistar a adesão dos ouvintes. Segundo o cantor, verificou-se uma deformação do gosto do público e desapareceu a verdadeira canção popular ou, pelo menos, aquilo que nós imaginamos que seja o folclore - testemunho de certo modo de vida.
- As pessoas estão contaminadas por um gosto que lhes é fornecido, que lhes é imposto, e fixa, na verdade, as preferências da maioria. Torna-se urgente reagir, contribuir para uma higienização desse gosto.
José Afonso chegou, porém, à conclusão de que, neste particular, as canções puramente líricas "são um pouco impotentes".
Deste conjunto de preocupações nasceram, por exemplo, "Pombas" e "Trovas Antigas", canções simples, com letras simples, canções de roda, e outras, com temas mais directos.
- Muitas canções foram, todavia, feitas por motivos quase subjectivos, testemunhos de situações que eu vivi, intensas sob o ponto de vista vivencial... - disse-nos, quando lhe falámos de "Senhor Poeta".
Quais os critérios fundamentais que determinam a escolha dos temas de José Afonso? Que influências se revelam nas suas composições?
- Em geral, não subordino, até por impotência, por incapacidade de meios, por desconhecimento da música e por outras insuficiências resultantes da minha própria formação, não subordino a música a determinados temas, textuais ou musicais - explica-nos.
As canções surgem como relações quase autobiográficas. José Afonso afirma que aquilo que lhe ocorre, fundamentalmente, é a música, certos fragmentos musicais. São, por vezes, repetições, plágios inconscientes, que "apanha no ar, com facilidade". Depois, vão surgindo as palavras, enche as frases musicais de palavras, e vai-as distribuindo, subordinando-as às exigências do ritmo.
- Mas eu componho puramente de ouvido - confessa, sorrindo - Quando falo de composição fico atrapalhado...
Um certo tipo de alienação
Pouco a pouco, a esplanada enchia-se. O sol aquecera um pouco a manhã difusa. Aproximou-se um homem com uma caixa de pensos para curativos. José Afonso depositou uma moeda na tampa e tirou um penso. "Tire mais" - insistiu o homem. "Não, este é suficiente", respondeu o poeta.
Do outro lado da avenida chegava, cadenciado, o som monótono do rufar dos tambores dos soldados de um quartel.
Já se pôs a José Afonso o problema de se profissionalizar na música. Presentemente, está um pouco ligado ao disco, pois tem por missão fazer "umas tantas canções para uns tantos LPs, em determinado espaço de tempo".
- Diz-se, em certos meios, que o sr. Arnaldo Trindade [ver "Andanças do Andarilho"], pode vir a representar uma alienação... - sugerimos. Tranquilamente, José Afonso pergunta:
- Mas alienação porquê? Por abastardar a qualidade daquilo que faço ou por me prejudicar como homem?
- Foi em relação ao abastardamento da qualidade que se levantou a questão, sobretudo na medida em que da referida ligação resultariam compromissos que obviariam a que continue aquilo que tem feito até agora...
O cantor ficou em silêncio, por momentos. Depois disse:
- Não sei, veremos... Suponho, porém, que aquilo que está na forja é melhor do que aquilo que tenho feito. É muito cedo, ainda, porque há pouco tempo que assinei o contrato com o Arnaldo Trindade. Por razões de ordem fisiológica, ou canto ou dedico-me à pesquisa, no campo musical. Precisava, portanto, de um mínimo de profissionalização, de receber um ordenado para apresentar trabalho. Não sei se isso contribuirá para uma perda de qualidade ou se essa perda de qualidade virá a ser motivada pelo meu desconhecimento de música.
José Afonso afirma que as pessoas fazem uma ideia muito romântica acerca do que seja produzir qualquer coisa que esteja dependente da sensibilidade.
- A canção é um produto como os outros e para que se apresente nas melhores condições é preciso que haja uma certa disponibilidade de tempo que eu não teria se continuasse no ensino, enterrado até às orelhas dentro do magistério e preocupado com outras obrigações parcelares.
A actividade de professor do liceu que desempenhou teve influência na sua música:
- Durante o tempo em que ensinei no ciclo preparatório, conheci um tipo de relações de uma pureza impossível, pelo menos, entre nós, pessoas adultas.
Isso influiu poderosamente na produção de canções representativas como o "Menino de Oiro", o "Menino do Bairro Negro" e "Altos Castelos".
Algumas vezes (assim aconteceu em Moçambique, na Beira) a música serviu-lhe para complementar o ensino. Mas, de um modo geral, os alunos não "exigiam" que ele cantasse. Só por brincadeira.
- De qualquer modo, as próprias relações entre mestres e discípulos, quanto a mim erradas, fazem com que o aluno encare o professor como o "senhor professor", aquele que tem por missão pôr os riscos vermelhos nos pontos e ensinar a matéria. As relações entre o professor e o aluno, dentro de uma aula, no seio da rotina escolar, impedem que o jovem veja o mestre para além dessas limitações. No meu caso, não pude ultrapassar a situação, talvez por impotência ou deficiência de formação profissional... - diz-nos José Afonso.
Os operários, mais do que qualquer outro grupo, com o seu agudo sentido de fraternidade, exerceram, igualmente, uma influência sensível no cantor. Ele explica:
- Não foram particularmente estimulantes, no aspecto da criação. Se eu não tivesse convivido com operários, ver-me-ia obrigado a pôr em questão a função daquilo que canto. Acontece que a culpa não é dos operários mas, sim, minha. Não procuro iludir a minha origem burguesa, a minha experiência de estudante, embora esta tenha sido relativamente larga, devido a factores mais ou menos acidentais, como a possibilidade de estabelecer contacto com pessoas situadas fora do âmbito universitário.
Esse contacto não foi, conforme sublinha, determinado por nenhuma tomada de consciência, mas pelas circunstâncias especiais em que viveu em Coimbra:
- Convivi muito com sociedades de bailaricos. O Flávio Rodrigues era o meu acompanhador predilecto e eu fazia muitos passeios, ia cantar a catequeses, e se não era a catequeses era a outro sítio qualquer (aliás, eu não distinguia entre cantar para catequeses e cantar para bailaricos). E tudo isto e uma forma bastante anárquica de vida, em Coimbra, em torno da minha condição de estudante, é que me forneceram uma enorme diversidade de experiências. Para mim, foi proveitoso e estimulante da criação andar às boleias, não ter dinheiro, precisar de usar estratagemas para vencer algumas situações. Hoje, tudo isso está ultrapassado. Surgiu uma geração que racionaliza muito o seu comportamento num determinado sentido, como eu nunca fiz; e todas as minhas recordações começam a ser inúteis...
Atafulhado no ensino
A passagem de José Afonso por Moçambique revelou-se, também, "proveitosa, designadamente do ponto de vista musical"; o ritmo que está sempre na base das manifestações musicais dos africanos, impressionou-o e interessou-se pelo folclore e viu dançar a marrabenta ("Pareceu-me já uma forma degenerada de expressão da arte africana").
Em Moçambique, esteve "atafulhado no ensino". Fez pequenas viagens ao interior, em serviço de exames. Um dia, deslocou-se ao Zobué e cantou para os indígenas.
A posição do africano em face ao mundo do branco continua a impressionar José Afonso:
- Havia nos negros uma atitude contemplativa que nós, brancos, não éramos capazes de ter. O branco vai para África investido numa missão oficial ou profissional. Perante o mundo do branco, o africano tem um comportamento "filosófico", irónico, realmente "contemplativo"...
E o cantor analisa essa "bonomia de relações":
- Tratava-se de uma atitude correcta, cortês...
Dá o exemplo de um acidente de viação. Enquanto os brancos discutem quem pagará as indemnizações, os africanos, contemplam o espectáculo, sorrindo.
Ou então:
- Em Lourenço Marques, a senhora vai às compras e leva o "mainato" no assento de trás do carro. Este acaba por ser o patrão e a patroa o "chauffeur".
A passagem de José Afonso por África reflectiu-se em composições como "Vai Maria vai", que cantou em conjunto com Teresa Paula Brito, e "Era de noite e o levaram". José Afonso acrescenta que gostaria de encher as suas músicas só com instrumentos de percussão, e ir eliminando, pouco a pouco, os preconceitos ligados à melodia, que, segundo afirma, derivam do fado de Coimbra.
Entretanto, admite a possibilidade de ter recebido, ainda, uma (difusa) influência de Joan Baez, cujas composições ouviu, pela primeira vez, em Moçambique. Mas como afirma, ficam-se por aí os pontos de contacto entre as suas canções e a música estrangeira. Na verdade, José Afonso elabora e interpreta de uma forma muito pessoal o seu repertório. Durante os espectáculos em que participa, chega a esquecer-se das letras que ele próprio escreveu e, em geral, é o público que lhe aviva a memória. Uma amnésia provocada pelas condições difíceis que rodearam, em determinado período, a vida do cantor, justifica essas singulares situações a que parece não ser estranho, também, o desprendimento de José Afonso em relação à obra que realizou.
- Talvez exista um certo desprendimento... - concorda o autor de "Trás outro amigo também". E explica: "Encaro tudo por um prisma bastante lúdico. Estou sempre a pensar que, em breve, deixarei de cantar para fazer outra coisa qualquer. De resto, dedico-me à música com menos gosto do que, por exemplo, ao desporto."
José Afonso fala-nos, uma vez mais, da sua experiência de professor:
- Gostei muito de ensinar, mas o ensino não me ofereceu a diversidade de vivências que retiro da minha actividade de cantor. Estou indeciso quanto ao que, efectivamente, prefiro fazer. No fundo, não me desagradaria exercer, alternadamente, as duas profissões: dois anos a ensinar, um ano a cantar...
O movimento das baladas
O diálogo derivou para o chamado movimento das baladas. Há algum tempo, elementos integrantes dessa tendência concluíram ter chegado o momento de fazerem um balanço, e apuraram que o género a que se dedicavam não era, afinal, a "via" procurada. Dos baladeiros que proliferaram durante cerca de três anos no quadro de música ligeira apenas dois ou três sobreviveram. José Afonso possui uma opinião formada acerca do assunto:
- Até à data, nunca se pusera em questão a função da música ligeira. A partir da altura em que surgiram os primeiros cantores do novo movimento, as pessoas começaram a perguntar se estariam perante a "via" certa da canção nacional. Isto demonstra já a importância das baladas. Houve, de resto, uma melhoria sensível da qualidade dos textos. Atribuiu-se, no entanto, demasiado valor aos poemas. Muitas canções viviam mais da letra do que da música. E uma coisa é um poema, outra um texto para ser cantado...
Segundo José Afonso, os baladeiros desenvolveram uma acção colectiva, que não pode deixar de se considerar válida. Apresentaram-se em colectividades onde nunca tinham entrado cantores profissionais e levaram às respectivas massas associativas um pouco de cultura:
- Antes de se tornarem autores, esses cantores eram indivíduos com opiniões e dotados de uma grande vontade de intervir nos acontecimentos. Não buscavam o vedetismo.
E o poeta acrescenta:
- Não se tratava de profissionais. Assim, muitas das canções que produziram parecem-me banais, do ponto de vista musical, já que se baseiam apenas em duas ou três posições à viola. Em todo o caso, conheço alguns cantores que se integram no movimento e possuem inegável valia. Um deles é o José Mário Branco que vive em França. Duvido que exista, entre nós, fora do âmbito das baladas, alguma composição que se compare às que ele realiza.
Tal como os badaleiros, José Afonso também não persegue o vedetismo:
- Não me interessa que me considerem um músico ou uma vedeta. Pelo contrário, estou empenhado em conseguir que se desfaça a impressão de que me tornei uma coisa que deve colocar-se numa redoma. Uma vez que me acusam de ter sido injustamente mitificado, quero afirmar que sou apenas uma pessoa comum. Não contribuí, pelo menos de forma consciente, para que me propusessem como exemplo humano a seguir. Recuso-me, terminantemente, a transformar-me num mito de segunda ordem, ou de que ordem seja; tenho defeitos de diversa natureza, insuficiências, mais do que limitações. Canto, de vez em quando, como poderia fazer judo, jogar futebol ou dedicar-me à literatura policial.
À tarde, após o almoço, passeámos com José Afonso, por Setúbal. Na parte mais antiga da cidade, mostrou-nos, com um entusiasmo espontâneo, recantos, ângulos da paisagem, simples pormenores de edifícios. Caminhava vigorosamente, era quase a custo que acompanhávamos as suas passadas. Numa taberna do cais deteve-se a falar com alguns pescadores que conhecia e engoliu um copo de vinho que lhe ofereceram.
Embora se considere desadaptado em relação ao meio pequeno em que vive, José Afonso procura actuar sobre esse meio, para o modificar, não obstante conheça as dificuldades que tem de enfrentar. Por isso se integrou no Círculo Cultural de Setúbal.
- Tenho poucas relações, em Setúbal, todas elas quase acidentais. Um ou outro empregado de mesa, alguns amigos com preocupações semelhantes às minhas, e pouco mais - diz-nos.
Para José Afonso, Setúbal é uma espécie de "porta-aviões", aonde chega e de onde parte constantemente, foi ali colocado como professor, gostou da cidade e da respectiva situação geográfica e ficou.
- Sou um sujeito que dá os seus passeios ao domingo, e nada mais. Gosto da terra. É cómoda, sob o ponto de vista das relações sociais.
Diz o cantor que, em Setúbal, ninguém o conhece. Em sua opinião as pessoas olham para ele como para outro indivíduo qualquer. Aprecia o campo e a proximidade do mar. O contacto com a natureza é uma coisa que o "enche, de uma maneira particularmente intensa".
- A configuração da região, a Arrábida, umas pistas que há por aqui, permitem que me dedique a formas mais ou menos higiénicas de vida, as quais me dão muita satisfação - diz-nos.
Gosta também de atravessar o Tejo, de ir do Barreiro a Lisboa, de Cacilhas ao Terreiro do Paço, ou de "participar, como normal figurante, numa entrada de um desafio de futebol".
Actualmente, vai poucas vezes ao futebol, porque a paixão clubista, a "beatice futebolística" o irrita. Entende, porém, que o fenómeno da presença das multidões num campo de jogos é perfeitamente explicável.
- Não há que criticar as aglomerações, mas apenas o modo como se comportam e em função de que interesses - acrescenta.
Depois, ressalva:
- Mas não assumo qualquer atitude paternalista relativamente às paixões clubistas.
José Afonso jogou futebol nos juniores da Académica e praticou judo.
- Fui mesmo um viciado no judo e até parti uma perna em dois sítios. Tenciono, aliás, voltar à actividade.
Com 41 anos, o cantor declara-se fisicamente "em forma" e psicologicamente "muito gasto". Lê bastante, embora sem um critério definido, e nunca acaba os livros porque, segundo afirma, "não percebe as histórias":
- Não consigo nunca entender, por exemplo, os romances policiais...
Detesta livros de anedotas, mas dedica-se, frequentemente, à leitura de revistas de informação político-social nacionais e estrangeiras e, pelo fim da tarde, debruça-se sobre os jornais.
- Trago sempre um livro no bolso e faço grandiosos planos de estudo que nunca cumpro.
A frequência de Londres
Recentemente, o cantor gravou um LP em Inglaterra. A propósito, conta que, no primeiro ensaio, efectuado em Lisboa, utilizou diversos instrumentos escolhidos no próprio local da gravação. O padre Fanhais tocou bombo e o José Fortunato veio do Barreiro, propositadamente, para acompanhar o "São Macaio".
- Aquilo que eu tinha em mente era, porém, ir a Inglaterra - acrescenta. E explica: "Estava farto de Setúbal. Queria por força ir a Inglaterra. Como em Portugal as condições técnicas provocaram distorções de voz, o desaparecimento dos graves e dos agudos, etc., decidi recorrer aos estúdios da Pye. Então, seleccionei canções susceptíveis de serem interpretadas com um único acompanhador. Depois, chegaria à conclusão de que muitos dos trechos mereciam melhor tratamento, um suporte musical de qualidade superior.
José Afonso cantou acompanhado por Boris. Rui Pato encontra-se a cumprir serviço militar obrigatório e, consequentemente, não estava disponível para se deslocar a Londres.
- Tenciono voltar a trabalhar com o Rui - diz José Afonso - Ele atira para o clássico, enquanto que o Boris pertence ao tipo "folk".
Na opinião do cantor, as suas composições não são conhecidas em Inglaterra porque existe, naquele país, uma música ligeira muito evoluída, com a qual não pode competir:
- Londres é a capital da "pop-music". Os estilos e as técnicas adoptadas na capital britânica não se comparam com os que cultivamos em Portugal. Mas notei uma reacção muito boa aos meus discos, em França e na Bélgica.
Ao serviço de Arnaldo Trindade, José Afonso percorrerá o País, em busca de novos valores da canção nacional. A propósito, esclarece:
- Limitar-me-ei - que remédio! - aos meios mais refinados, ao plano vasto e, simultaneamente, limitado em que decorre a minha própria existência. Procuro indivíduos com imaginação, que componham música de qualidade e vendável. O Arnaldo Trindade é um comerciante. A tarefa que me encomendou subordina-se a objectivos comerciais. Tenho, porém, a maior liberdade de acção. O patrão, que também é um homem de vistas largas, dá-me carta branca. Estou, sobretudo, interessado em cantores dos subúrbios das cidades angolanas e moçambicanas. Acho que ainda existem aí estilos e técnicas originais e ignorados.
José Afonso procederá a uma investigação de carácter etnográfico. Paralelamente, preocupar-se-á com a sua obra e tentará libertar-se dos vícios que afirma afectarem as canções que compõe. Para tanto, propõe-se retirar da música "pop" os elementos necessários:
- Gostaria de ser capaz de fazer em Portugal, juntamente com outros, o que Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil - citando apenas aqueles que conheço - fizeram no Brasil, salvaguardadas, evidentemente, as devidas distâncias. De facto, o filão musical e a multiplicidade das experiências dos cantores brasileiros deixam-nos a perder de vista. De resto, a interpretação de música "pop" deve ficar para o Paulo de Carvalho que é exímio nisso.
Paulo de Carvalho permaneceu, por momentos, no centro da conversa. Segundo José Afonso, ele corre o risco de se transformar num cantor "pop" igual aos outros:
- Cantando em inglês, não contribuirá para o progresso da música especificamente portuguesa.
- Ouvir o Paulo de Carvalho será, pois, o mesmo que ouvir Tom Jones - alvitrámos.
José Afonso meneou a cabeça:
- Bem, eu gosto mais do Paulo de Carvalho. O que queria dizer era que, sendo um bom cantor "pop" de língua inglesa, ele interessará tanto ao público inglês como ao português.
Falámos, depois, acerca de projectos. Uma das principais preocupações actuais de José Afonso, consiste em mudar de casa. Durante o nosso longo passeio pelas ruas de Setúbal, ele espreitou para o interior de todas as vivendas com "escritos" nas janelas, situadas perto do cais. Agilmente, trepava pelas saliências das paredes e olhava, através dos vidros, as salas vazias. A escolha parecia difícil. José Afonso é um homem comum. E as suas apreensões e esperanças são as de um homem comum:
- Durante um ano e meio ou dois - não sei ainda - tenho de viver do meu ofício presente. Entretanto, tenciono melhorar as minhas canções, sobretudo do ponto de vista musical, dar-lhes um suporte instrumental de melhor qualidade. Depois, voltarei ao ensino. Isso acontecerá, inevitavelmente, quando já não tiver voz para gravar discos ou quando atingir a saturação e começar a repetir-me. Mas não escondo que o meu fundamental objectivo consiste em garantir a subsistência da família.
Sem comentários:
Enviar um comentário