segunda-feira, março 30, 2009

Protagonistas reconstituem fuga de Álvaro Cunhal de Peniche

Reportagem Multimédia retirada do JN
ADELINO CUNHA

Joaquim Gomes e Carlos Costa voltaram à prisão para recordar a fuga com Álvaro Cunhal e mais um grupo de dirigentes do PCP. Depois do ter sido preso no Luso, esta fuga marca o início do exílio do líder comunista até ao 25 de Abril. Veja a reportagem multimédia















A multidão que palmilha as ruas da vila ainda vocifera impropérios contra o árbitro do jogo de futebol que terminara uns minutos antes. Há uma figura estranha que circula em sentido contrário. Um guarda da GNR desarvorado e sem chapéu berra com ardor: "Fui traído! Fui traído!". Berra alto o azedume. Um homem corre na sua direcção, agarra-se a ele e pragueja ainda com mais estardalhaço ofensas ao árbitro. A fuga podia ter acabado neste andamento do Diabo, mas não, não acabou: Cunhal, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Guilherme Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues conquistam a liberdade.

"O homem meteu-se por Peniche aos gritos, fui atrás dele e, quando o apanhei no meio da confusão, comecei a gritar ainda mais alto. Fartei-me de gritar nomes ao árbitro!", recorda Joaquim Gomes. "Foram os meus gritos que acalmaram a situação".

Jorge Alves cedera aos apetites dos sentidos e aceitara dinheiro para facilitar a fuga. Fora recrutado por Joaquim Gomes durante uma breve troca de palavras. É preciso ver que os presos estão proibidos de se dirigirem aos guardas. Vive-se ao ritmo dos incontáveis sons do apito e em obediência às vozes de mando. Joaquim Gomes arrisca. Há riscos piores: o risco do tédio dos dias que desfiam e o risco de morrer sem dar por nada. "A primeira coisa que fazíamos ao chegar a uma prisão era estudar as possibilidades de fuga". O contacto com o guarda foi um tiro no escuro. "Não sabíamos como ele iria reagir, mas disse tanto mal do Salazar, que o Álvaro Cunhal e o Jaime Serra concordaram em usá-lo".

A determinação de coagir psicologicamente os presos está pespegada no cartaz do regulamento prisional colocado na parede: o preso deve ter a sensação de que está permanente sob a vigilância dos guardas. "Queriam criar a ideia de que não podíamos fazer nada sem que nos vissem, mas a verdade é que recrutámos um deles para nos ajudar a fugir", ironiza Carlos Costa.

Joaquim Gomes estabelece o contacto com o guarda Jorge Alves e os dirigentes no exterior tratam dos pormenores: acertar a fuga e pagar a colaboração muda. Dias Lourenço, Pires Jorge e Octávio Pato congeminam o plano e escolhem um domingo: dia 10 de Janeiro. "Havia menos PIDES. Iam à sua vida", invoca Joaquim Gomes.

Os dirigentes no exterior aceitam a aposta na colaboração do GNR, mas advertem para os riscos de a operação abortar e provocar um aumento da repressão. "Se aquilo desse para o torto havia de ser bonito", lembra Pires Jorge. As coisas parecem correr mal a certa altura. O GNR comunica uma súbita alteração das escalas. A fuga terá de ser antecipada para dia 3 de Janeiro. As coisas parecem mesmo correr mal.

Os fugitivos mantêm-se inabaláveis: querem fugir. Cedem em aspectos fundamentais da segurança e abandonam a ideia do corte das linhas telefónicas em redor de Peniche para evitar as comunicações após a fuga. Irão fugir no dia 3.

Está tudo pronto. No largo fronteiriço ao Forte de Caixas, o actor Rogério Paulo pára o automóvel, abre e fecha o porta-bagagens. São quatro da tarde. Dois minutos depois, vai embora. Está dado o sinal para os presos das celas do lado norte.

Após o jantar das 19 horas, os guardas fazem soar os apitos para os presos recolherem às celas. Cunhal está no grupo que regressa ao pavilhão C sem protecção especial: somente um guarda prisional. Guilherme da Costa Carvalho ataca: neutraliza-o com um toalha embebida em clorofórmio e é o próprio Cunhal quem lhe enfia na boca uma peça que impede o guarda de enrolar involuntariamente a língua e arriscar uma morte por asfixia. "Nem piou", afirma Jaime Serra. É preciso acrescentar que tudo isto se passa ao som da 6ª Sinfonia de Tchaikovsky, tocada no gira-discos do preso Humberto Lopes, autorizado a usufruir desse pequeno prazer num contexto de descompressão do regime prisional.

Ninguém presta atenção aos acordes. Dirigem-se de imediato para a porta do refeitório. É aqui que são esperados pelo guarda Jorge Alves. Um após outro, os presos colocam-se debaixo do seu capote, atravessam o pequeno pátio paralelo às celas, passam numa zona vigiada visualmente por um segundo guarda, continuam até perto de um muro que terão de saltar.

A operação corre normalmente até ao instante em que o guarda decide abortar o plano abruptamente. "Ele andava cada vez mais assustado à medida que o tempo passava e na noite da fuga esperava cinco ou seis presos e apareceram-lhe dez", justifica Joaquim Gomes.

O guarda cede aos seus demónios pessoais, entra em pânico e decide fugir. "Os últimos tiveram de fazer o percurso sozinhos, rastejando e andando de cócoras". Dificilmente poderiam passar pelo segundo guarda. "Viemos depois a saber que era cunhado do Jorge Alves. De certeza que nos viu, mas fingiu".

Chegar ao piso inferior exige agora um salto considerável. Atiram-se para cima de uma figueira e alcançam os terrenos das hortas. Pedro Soares precipita-se, cai e fere-se num joelho. Continuam. Têm de percorrer mais um troço vulnerável e só depois alcançam a muralha. Conseguem. Escondem-se dentro da guarita. Há silêncios que podem ser de morte.

É aqui que Jaime Serra fixa os lençóis sabiamente atados por Francisco Miguel e lança a corda através da ameia. Começam a descer pela muralha na direcção do fosso, mas, chegados lá abaixo, irão provar uma amarga surpresa que ameaçará novamente comprometer a fuga. Guilherme da Costa Carvalho larga a corda demasiado cedo, abate-se sobre os pedragulhos na base da muralha e acaba estendido no chão a sangrar da cabeça. Fica ferido.

O fracasso esteve iminente desde o início. O guarda corrompido por diversas vezes deu sinais de desistência, forçou uma alteração do dia da fuga que impediu a aplicação das medidas de segurança e no decorrer da própria fuga desistiu e desistiu dramaticamente.

"Quando demos por ele estava a descer a muralha com as botas cardadas a roçar pelas paredes abaixo. Aquilo fazia um barulho imenso", lamenta Joaquim Gomes.

A fuga continua. Descida a muralha, o êxito está aqui mais perto. Carlos Costa ampara o corpulento Guilherme da Costa Carvalho pelo fosso até ao último muro que os separa da liberdade: avistam os carros e correm. O carro de Cunhal é dos primeiros a arrancar.

Dois homens ficam para trás e perdem-se na direcção da vila. Joaquim Gomes corre no encalço de Jorge Alves. O guarda da GNR desarvorado e sem chapéu berra com ardor: "Fui traído! Fui traído!". Berra alto o azedume. Joaquim Gomes corre na sua direcção, agarra-se a Jorge Alves e pragueja ainda com mais estardalhaço ofensas ao árbitro. Regressam aos carros e fogem. A fuga termina com sucesso neste andamento do Diabo.

Sem comentários: