sexta-feira, outubro 24, 2008

E A ONU, DROGA-SE?

Fernanda Câncio, in DN


Perguntadas, a maioria das pessoas responderá que uma droga é uma substância proibida que faz mal à saúde. Algumas talvez acrescentem que altera a percepção. A primeira definição - proibida - é porém a mais imediata e assertiva. E, naturalmente, proibida igual a má. A mesma lógica, aplicada ao contrário, resulta naquilo que esta semana fez parangonas. A saber, o facto de um estudo da Cruz Vermelha portuguesa (CV) sobre o consumo de álcool entre os jovens ter concluído que estes não têm consciência de que o seu consumo faz mal e à pergunta "o álcool é uma droga?" responderem negativamente.

A única coisa espantosa neste estudo é ter espantado alguém. Há 10 anos, foi manchete do DN um inquérito europeu sobre consumo de substâncias estupefacientes e psicotrópicas por estudantes dos 13 aos 15, efectuado sobretudo com o objectivo de aferir do consumo daquelas a que se costuma dar o nome de "drogas", e que evidenciava um brutal consumo de substâncias legais (além do álcool, barbitúricos) face ao diminuto consumo das ilegais. Especialistas entrevistados falavam de um consumo "toxicómano" do álcool pelos miúdos - a ingestão acelerada, com o objectivo de atingir o estado etilizado. O paradoxo prolongava-se no irrisório investimento no combate ao consumo e à dependência do álcool, um milionésimo do gasto no "combate à droga" - assim permanecendo, 10 anos depois.

Aliás, ainda não se logrou sequer proibir o consumo de álcool a menores de 18 (que não passou à primeira nem à segunda, fixando-se nos 16, e com os efeitos práticos que o estudo da CV dá a ver), nem interditar anúncios a álcool na TV. Em contrapartida, a proposta, em 99, de transformar o consumo de drogas - as tais substâncias proibidas - de crime em contra-ordenação foi o fim do mundo. A medida acabaria por ser aprovada (vigora desde 2001) mas a discussão sobre as reais diferenças e semelhanças entre o que é comummente considerado "droga" e substâncias legais e aculturadas como o álcool e o tabaco nunca arrancou. A maioria dos pais ficará em choque se descobrir que o seu rebento adolescente deu uma passa num charro de haxixe mas até acha graça a vê-lo chegar entornado de uma noitada com amigos - especialmente se for rapaz. Pouco importa que o álcool (para não falar do tabaco) tenha uma mortalidade e uma morbilidade associadas infinitamente superiores às do haxixe: se há substâncias proibidas e o álcool não é proibido, não pode ser assim tão mau, certo? A lógica é inatacável e a irresponsabilidade deve ser assacada a quem há décadas aprovou uma listagem de substâncias proibidas e inventou o conceito circular e estulto de droga como algo que faz mal porque é proibido, invertendo a ordem da prova e diabolizando umas substâncias em benefício de outras. Mais precisamente, as Nações Unidas (para quem não sabe, a proibição de consumo, produção e venda das substâncias conhecidas como drogas foi decidida em três convenções da ONU, entre 1961 e 1981). Caso para perguntar que droga marada andaram a tomar, e como é que ainda ninguém ficou sóbrio.|

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