segunda-feira, junho 16, 2008

A fome infame

Boaventura Sousa Santos
in, Visão

O escândalo, finalmente, estalou na opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-
-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a monocultura de produtos de exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o. Cerca de um sexto da humanidade passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos, os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome.
A opinião pública está a ser desinformada sobre esta matéria, para que se não dê conta do que se está a passar. Porque é explosivo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. A fome no mundo não é um fenómeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome, desde a Idade Média até ao século XIX. O que é novo são as suas causas e o modo como as principais são ocultadas.

A opinião pública tem sido informada de que o surto da fome está ligado à escassez de produtos agrícolas (e que esta se deve às más colheitas provocadas pelas alterações climáticas); ao aumento de consumo de cereais na Índia e na China; ao aumento dos custos dos transportes devido à subida do petróleo; à crescente reserva de terra agrícola para produção dos agro-combustíveis. Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não são suficientes para explicar que o preço da tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de 2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do preço do petróleo, resultam de o capital financeiro (fundos de pensões, fundos hedge, de alto risco e rendimento) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas, depois da crise do investimento no sector imobiliário.

Em articulação com as grandes empresas que controlam o mercado mundial de sementes e de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Quanto mais altos forem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos investimentos financeiros. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes de cereais aumentaram 83 por cento. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.

O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado com as «generosas» ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas económicas neoliberais que há 30 anos têm vindo a forçar os países do Terceiro Mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas próprias populações e a concentrar-se em produtos de exportação, com os quais ganharão divisas que lhes permitirão importar produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos. Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente «generosidade» dos EUA na ajuda alimentar com o seu consistente voto na ONU contra o direito à alimentação, votado por todos os outros países.

A revolta contra a fome é mais um aviso contra as consequências da destruição do bem-estar dos povos para benefício exclusivo de um pequeno grupo de países. Para lhes responder eficazmente será preciso pôr termo à globalização neoliberal. O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que não as que ele próprio estabelece para seu benefício. Os cidadãos têm de começar a privilegiar os mercados locais, recusar nos supermercados os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção agrícola local, exigir da UE e das agências nacionais para a segurança alimentar que entendam que a agricultura e a alimentação industriais não são o remédio contra a insegurança alimentar. Bem pelo contrário.

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Apenas acrescentaria que os cidadãos, em vez de cairem no "nacionalismo" e começarem a cultivar chá nos seus quintais, podem também privilegiar quem pratique outras regras de mercado, nomeadamente o Comércio Justo!

Guilherme Rietsch Monteiro

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