sábado, setembro 15, 2007

COMBATER O AQUECIMENTO GLOBAL UM DESAFIO SOCIAL E POLÍTICO ESSENCIAL


NO PIOR DOS CENÁRIOS, 150 MILHÕES DE PESSOAS PODERÃO SER OBRIGADAS A DEIXAR AS SUAS CASAS ATÉ AO ANO 2050, DEVIDO À SUBIDA DO NÍVEL DAS ÁGUAS NOS OCEANOS EM RESULTADO DO AQUECIMENTO GLOBAL1. AO MESMO TEMPO, AS MORTES CAUSADAS PELA FALTA DE ÁGUA, MALÁRIA E FOME PODEM AUMENTAR EM 3 MIL MILHÕES, 300 MILHÕES E DE 50 A 100 MILHÕES, RESPECTIVAMENTE.

EMBORA já seja mais que preocupante esta previsão dos efeitos das alterações climáticas, outros dois elementos podem ser acrescentados, de cuja importância todos devemos estar alerta:

— as repercussões na agricultura. Um aumento da temperatura que vá para além dos 3ºC muito provavelmente vai provocar alterações no conjunto da produtividade nos ecossistemas ligados ao cultivo. Abaixo daquele valor, os impactos negativos sentir-se-ão (e já se sentem hoje) nas regiões tropicais e sub-tropicais, sobretudo em África e na América do Sul.

— os efeitos nos ecossistemas. As consequências do aquecimento são hoje claramente observáveis e algumas delas vão ter implicações graves nalgumas populações: uma quebra acentuada na biodiversidade (menos 25%, segundo um estudo publicado na revista "Nature"), o desaparecimento de recifes de coral e a crescente fragilidade das grandes áreas florestais como a da Amazónia.

Como irá o sistema capitalista lidar com estas situações? A questão continua a ser preocupante se repararmos que as políticas já implementadas em certos casos, como nas ilhas do Pacífico, ou em Nova Orleães a seguir ao furacão Katrina, ou ainda quando vemos os cenários estratégicos propostos por certos "especialistas".

NAS ILHAS DO PACÍFICO

Nalguns pequenos estados nas ilhas do Pacífico, a ameaça do aquecimento já é vivida dolorosamente como um problema do dia-a-dia. No início de Dezembro de 2005, a população de Lateu, uma pequena aldeia de 100 habitantes na ilha de Tegua, no estado polinésio de Vanuatu, foi deslocada para fugir às cheias frequentes2: a barreira de corais já não protege suficientemente as ilhas no que respeita aos furacões, com a erosão da costa a avançar ao ritmo de 2 a 3 metros por ano. Lateu foi o primeiro caso de realojamento colectivo após a subida do nível dos oceanos. Mas Tuvalu, outro estado do Pacífico, já tem três mil refugiados climáticos. Situado 3400 kms a nordeste da Austrália, este país (26km2 de terra mais ou menos firme) é feito de oito atóis elevando-se a 4,5 metros acima do nível do mar. Pode ficar mergulhado na

História como o primeiro país a ser completamente evacuado por causa das alterações do clima.

Ciente desta situação, o governo de Tuvalu pediu em 2000 à Austrália e à Nova Zelândia para acolherem os 11.636 residentes caso fosse necessário. Camberra recusou, alegando que um acordo deste tipo seria "discriminatório" para os outros candidatos a asilo de refugiados. Quanto à Nova Zelândia, apenas aceitou acolher 74 pessoas por ano, desde que tenham entre 18 e 45 anos e uma boa oferta de emprego no país, e ainda que provem conhecer bem o inglês, tenham boa saúde e posses suficientes caso tenham pessoas a cargo na família3. Para termos um retrato completo desta política, lembremo-nos que a Austrália, por exemplo, tem três habitantes por km2, e o seu PIB por habitante é de 29.632 dólares/ano4, e que recusou ratificar o Protocolo de Quioto enquanto continua a ser um dos maiores utilizadores de carbono no planeta.


KATRINA, NOVA ORLEÃES


"Os pobres vão ser as principais vítimas das alterações climáticas", avisa o IPCC. O caso Katrina mostra que este aviso também serve para os países desenvolvidos. Não há uma base sólida para afirmar que o furacão que devastou Nova Orleães em Agosto de 2005 se deveu ao aumento da concentração na atmosfera de gases de efeito de estufa. Mas a violência dos furacões do Atlântico Norte duplicou nos últimos 30 anos, provavelmente devido ao aquecimento5. Acima de tudo, a resposta a esta crise foi muito esclarecedora. Antes, durante e depois.

Antes? Embora a ameaça pendente sobre a capital do jazz fosse conhecida há muito tempo, o estado federal resolveu, para financiar as suas aventuras belicosas, cortar desde 2001 no orçamento destinado às equipas de prevenção de cheias, a SELA (Southeast Louisiana Urban Flood Control Project)), cuja administração estava entregue à Divisão de Engenharia do Exército. No início de 2004, o governo disponibilizou cerca de 20% das verbas pedidas para fortalecer os diques do Lago Pontchartrain. No fim desse ano, e apesar da inédita actividade dos ciclónica, a SELA só recebeu um sexto do que tinha pedido: 10 milhões de dólares.

Entretanto, em Julho, a Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA) tinha desenhado um plano de emergência baseado na hipótese cínica de que os pobres (30% da população, 67% dos quais são negros) ficariam na cidade em caso de cheias - já que não teriam os recursos financeiros suficientes para se porem a salvo. "Os residentes têm que saber que estarão por sua conta durante vários dias", disse Michael Brown, chefe da FEMA. Em Julho de 2005, as autoridades municipais avisaram os habitantes que eles seriam "em grande medida os responsáveis pela sua própria segurança"6.

Durante? 138 mil dos 480 mil habitantes sem ajuda durante cinco dias, mais de 1000 mortos, repressão brutal de iniciativas visando a sobrevivência (sistematicamente caracterizadas de "pilhagem")... Estes factos foram amplamente divulgados pelos media. É evidente que não podem ser explicados unicamente pela negligência ou pela confusão instalada, mas sim por uma lógica que era contra os pobres, baseada numa perspectiva de classe, arrogante e racista, e onde as sórdidas especulações imobiliárias tiveram um papel nada negligenciável. As declarações de George W. Bush e dos seus próximos fornecem bastantes confirmações disso mesmo7.

Depois? Menos conhecidas publicamente, algumas medidas tomadas no contexto da reconstrução também se revestem de grande significado: salário mínimo suprimido, contratos públicos entregues a amigalhaços (Halliburton!) sem concurso, obstáculos ao regresso da população pobre para permitir a remodelação da cidade, entre outras8. Em resumo, foi um bom exemplo da forma como o capital pode usar a crise ecológica para melhorar as condições da sua valorização.


AMEAÇA DA BARBÁRIE


As ilhas do Pacífico e o Katrina trouxeram à ribalta aquilo a que os neoliberais chamam de "gerir as consequências do aquecimento". Se projectarmos estes exemplos à escala global, não se pode fugir a esta conclusão: dentro de algumas décadas, as alterações climáticas podem servir como suporte a cenários de barbárie duma dimensão tão inédita como as próprias alterações do clima provocadas pela actividade humana.

Alguns "thinks tanks" não fazem segredo dos seus projectos nesta área. Num estudo sobre as consequências de alterações graves no clima para a segurança nacional dos EUA, dois "especialistas" escreveram friamente que os "países com recursos suficientes para o efeito", como os EUA e a Austrália, "poderão construir fortalezas virtuais em volta do seu território, preservando os recursos para si próprios". Do lado de fora dessas fortalezas, "as mortes por guerras, bem como a fome e a doença (devido ao aquecimento) diminuirão o número da população, que, com o tempo, regressará a um equilíbrio com a "capacidade de carga"9. Muito poucos comentadores prestaram atenção ao facto do valor científico deste auto-intitulado "estudo"

simplesmente não existir (até porque, inspirado pelo filme de catástrofe "The Day After", põe o cenário duma ameaça dual de uma nova glaciação e da subida do nível dos oceanos, o que é um disparate). Mas mais preocupante é a falta de protestos nos meios científicos contra a utilização do conceito ecológico de "capacidade de carga" dos ecossistemas, aqui usada para apoiar um projecto sócio-político abjecto: a exteminação em massa dos pobres.

Infelizmente, este relatório não é uma excepção. A lista de erupções reaccionárias levantadas pelo aquecimento é de facto muito longa. Outros "especialistas" já procuram aperfeiçoar o mercado das licenças de emissão de gás de efeito de estufa, abrindo o mercado de "licenças para procriar", com o pretexto da "demografia galopante" dos países em vias de desenvolvimento serem a maior causa desestabilização climática. Sobre estas questões decorrem sérias batalhas ideológicas e sociais. Já o tínhamos visto na tentativa falhada de infiltração da mais importante associação de protecção da natureza dos EUA, o Sierra Club, por elementos da extrema-direita, propondo o fim da imigração como uma medida "ecológica" prioritária10. A gestão neo-liberal das alterações climáticas pode tornar-se ainda mais perigosa do que as próprias alterações.

A URGÊNCIA DE UMA ALTERNATIVA

Muitos sinais indicam que a luta pelo clima será cada vez mais um dos principais assuntos políticos e sociais. Para além do Protocolo de Quioto (um primeiro passo muito insuficiente), a resposta do sistema capitalista está a ser redesenhada e refinada mesmo debaixo dos nossos olhos. Ela consistirá por exemplo em usar a séria ameaça do aquecimento para acelerar a implementação das políticas neo-liberais geradoras de exclusão, dominação, desigualdade e degradação do ambiente. É necessaria então outra política climática. Uma política que possa salvar o clima num quadro de justiça social, democracia e respeito pelos ecossistemas, à escala mundial. Uma política que redistribui a riqueza radicalmente e põe um ponto final no produtivismo. A imposição desta política necessita da mobilização mais ampla, à escala mundial.

*Daniel Tanuro é um ambientalista belga e correspondente da revista "International Viewpoint", editada pela IV Internacional. Tradução de Luís Branco.

NOTAS:

1- 30 milhões na China, 30 milhões na Índia, 15-20 milhões no Bangladesh, 14 milhões no Egipto [Meyers 1994, citado por Friends of the Earth Australia, "Citizen’s Guide to Climate Refugees", 2005]

2- Environment News Service,12 Janeiro 2006

3 - Friends of the Earth Australia, 2005, op. cit.

4 - PIB por habitante corrigido pelas variações do poder de compra

5 - Revista "Nature", 31 Julho 2005

6 - Jessica Azulay, "FEMA planned to Leave New Orleans Poor Behind", http://newstandardnews.net

7 - Inquirido sobre as condições extremamente precárias em que os refugiados foram deixados no Texas, a mãe de Bush declarou: "Sabe que muitas das pessoas que se encontram neste pavilhão já viviam em muito más condições. Isto para eles é muito bom." "Editor & Publisher", September 5, 2005

8 - Patrick Le Tréhondat and Patrick Silberstein, "L’ouragan Katrina, le désastre annoncé", Syllepse, 2005

9 - An abrupt Climate Change Scenario and its Implications for US National Security", P. Schwartz and D. Randall, Outubro 2003. Este texto foi publicado em vários sites, nomeadamente no da Greenpeace.

10 - Bitter Division for Sierra Club on Immigration", The New York Times, 16 Março 2004

CLIMA E AUTO-SUFICIÊNCIA ALIMENTAR

De acordo com um relatório da Organização para a Agricultura e Alimentação da ONU, "Em cerca de 40 países pobres e em vias de desenvolvimento, com uma população total de 2 mil milhões, incluindo 450 milhões de pessoas sub-alimentadas, as quebras de produção devido às alterações climáticas podem aumentar drasticamente o número de sub-alimentados e obstaculizar os progressos no combate à pobreza e insegurança alimentar. Os países da África sub-sahariana iriam arcar com as consequências piores. Há cerca de 1.1 biliões de hectares de terra árida onde o período de crescimento das culturas é menor que 120 dias. Entre hoje e 2080, esta superfície pode aumentar entre 5 e 8%. Para lá de África, todas as regiões tropicais e sub-tropicais serão afectadas. A produção de cereais de 65 países que contêm mais de metade da população dos países em desenvolvimento poderia cair 280 milhões de toneladas (ou 16% do PIB agrícola destes países.)

FONTE: http://www.fao.org/newsroom/FR/news/2005/102623/index.html

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