Ouvi há uns anos na Dinamarca, num acampamento de Jovens da IVª Internacional (organização política mundial criada por Leon Trotsky, em resposta à IIIª Internacional, dominada por Estaline), a seguinte interrogação: "Se a Utopia é inantigível e intangível, então porque a perseguimos?". A resposta veio pronta: "A utopia é inantigível e intangível, porque ela mesma é composta de mudança, e à medida que caminhamos para ela, ela pula e avança. Então avançamos para ela, para caminhar!" (As palavras poderão não ter sido exactamente estas).
O meu camarada e amigo João Teixeira Lopes (que não esteve na Dinamarca :-)), escreve um texto sobre a Utopia ainda por alcançar do 25 de Abril. Caminhemos, então!
Em abstracto, a utopia é o fio do horizonte. Desloca-se, cada vez que nos aproximamos. É inatingível e intangível. Uma espécie de movimento perpétuo, que nos deixa sempre aquém. Uma representação sem território ou história, que nenhuma rede analítica consegue captar na sua imensidão, uma vez que os furos da rede, os espaços lassos entre os conceitos, deixam escapar aquilo que, apesar de produto dos homens, deles se desliga, ganhando existência própria.
Não vou falar, por conseguinte, de uma utopia. Falarei de um tempo e de um espaço concretos. Falarei de uma Revolução - o 25 de Abril de 1974 - que constitui a ruptura fundadora da nossa democracia e da segunda República.
É de uma revolução que falo. E jamais é desnecessário insistir neste ponto, uma vez que correntes de um certo revisionismo histórico persistem num afã de pirueta ideológica em apresentar o momento inicial como uma continuidade face aos anos de agonia da ditadura. Não se tratou, na verdade, de um mero golpe de estado. Desde cedo, nesse dia luminoso, o povo saiu à rua e não mais a largou, forçando e fazendo a história. Bem sei que a memória e a história são permanentes terrenos de luta, em que cada implicado usa a sua força para impor uma versão legítima. A Versão.
Não pretendo - jamais o pretenderia - reter a chave histórica única para a interpretação de um acontecimento histórico de tal grandeza e conflitualidade. Aliás, sou parte implicada no fazer da história. Tenho um ponto de vista, falo a partir de um lugar preciso, exacto, inequívoco: o dos que se revêem na luta contra o fascismo, a hedionda repressão e o moribundo império.
Falar do 25 de Abril é, pois, abordar a questão das possibilidades da utopia, da sua concretização em utopias viáveis, de carne e osso, utopias incorporadas nas pessoas e na sua condição perante o mundo. Basta olharmos para um indicador que condensa toda a ruptura: nas vésperas da revolução, a mortalidade infantil era de 40 por mil. Hoje desceu para 5 por mil. Ou para um outro, embora não tão expressivo: em 1960 a população universitária representava apenas 3% da população juvenil. Hoje ultrapassa já os 30%
Olho, pois, com a distância que estes anos me permitem, para a Revolução de Abril como uma Revolução inacabada. Um processo. Uma construção permanente. Uma insurgência inquieta. Uma dissidência com objectivos. Sendo utopia, move-nos para horizontes largos de justiça e fraternidade. Sendo viável, exige de nós, a cada momento, a intenção, o impulso e a paixão de ir mais além. Sempre mais além. É desta insatisfação que brotam os magníficos combates. É preciso estar à altura. Aqui e agora.
João Teixeira Lopes
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